SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 5 de outubro de 2025

A Arte de Liderar o Impossível: Do Gelo ao Cosmos por Egidio Guerra

 



Liderar, em sua essência, é a capacidade de navegar o impossível. É uma arte que se redefine conforme o contexto, mas cujo núcleo permanece: inspirar ação coletiva frente à adversidade extrema. Olhando para o passado, o presente e o futuro, podemos traçar um mapa da liderança que vai da pura sobrevivência à expansão da própria condição humana. 

Ranulph Fiennes conta que existe uma palavra em dinamarquês — polarhullar — que pode ser traduzida como um "forte desejo pelas regiões polares". Na virada do século XX, grandes navegadores empenharam-se em alcançar essas áreas remotas, movidos pela ambição de fazer fortuna, estabelecer recordes e conquistar prestígio. Ernest Shackleton sintetizou bem esse impulso: "É privilégio de poucos homens ver terras nunca vistas por olhos humanos." 

Do ponto de vista prático, as empreitadas de Shackleton não foram exatamente bem-sucedidas. A mais célebre, a bordo do Endurance, em 1914, fracassou pouco antes de efetivamente começar. Com o navio preso no gelo antes de alcançar a Antártida, a missão precisou ser abortada. A tripulação, então, viu-se à deriva, sem comunicação com o mundo externo e sem perspectiva de resgate, enfrentando, ao todo, 22 meses de privação extrema. Graças ao entusiasmo, à coragem, à inteligência e à prudência de Shackleton, a viagem teve final feliz, com o retorno para casa de todos os membros do Endurance — vivos. 

Nesta biografia eletrizante, narrada por Ranulph Fiennes – ele próprio um viajante experiente, que também enfrentou os desafios do continente gelado –, acompanhamos de perto os percalços e as conquistas de uma vida surpreendente e inspiradora. 

No Passado: Liderar é Sobreviver ao Impossível 

Em momentos de extremo perigo físico e desespero, a liderança se veste de resiliência e exemplo. A épica da Expedição Imperial Transantártica, magistralmente relatada por Ranulph Fiennes em Shackleton, é o arquétipo dessa forma de comando. Ernest Shackleton, com seu navio Endurance esmagado pelo gelo, enfrentou não apenas o continente mais hostil do planeta, mas o colapso iminente do moral de seus homens. Sua liderança não foi sobre chegar ao destino original – meta que se tornou impossível – mas sobre trazer todos vivos de volta. Ele liderou com empatia férrea, com otimismo inabalável e com a coragem de tomar decisões audaciosas, como a viagem em um bote aberto pelo Oceano Antártico. Liderar, para Shackleton, era ser o último a perder a esperança.

Esse princípio ecoa em outros palcos da história. Na Guerra do Vietnã, um conflito nebuloso e assimétrico, a liderança foi desafiada não apenas pelo inimigo, mas pela descrença interna e pelas complexidades geopolíticas. Comandar em tal cenário exigia uma tenacidade diferente, mas igualmente crucial: a de manter a coesão de uma força desgastada por uma guerra de guerrilha e um cenário político polarizado. 

Este livro escrito pelo jornalista Wilfred G. Burchett é considerado um clássico da grande reportagem sobre a resistência do povo vietnamita à intervenção militar dos Estados Unidos (1961-1975). Essa grande obra pode ser comparada à narrativa jornalística Dez dias que abalaram o mundo, do jornalista estadunidense Jonh Reed, que descreve a tomada do poder pelos sovietes, na revolução de outubro de 1917. 

No caso de Burchett, sua reportagem descreve os anos ainda iniciais desse período da revolução vietnamita (1963-1964), uma vez que a vitória só aconteceria em 1975.  A convite da Frente Nacional de Libertação, Burchett descreveu as atrocidades do imperialismo e também a reação da organização popular nas chamadas zonas libertas do Vietnã do Sul. O repórter acompanhou as ações da guerra de guerrilha nas florestas, junto aos soldados do exército popular, apoiados por homens e mulheres, por jovens, idosos e crianças, que realizavam as ações de defesa e ataque ao exército inimigo e rapidamente e se protegiam em gigantescos túneis subterrâneos, com armas rústicas das etnias tradicionais. 

Esta reportagem, além de consistir num documento histórico sobre as lutas de libertação nacional e as revoluções socialistas na região, nos anos 1960 e 1970, representa uma descrição fiel de como lutam os povos, ao descrever a vida do povo vietnamita nas zonas libertas, com a auto-organização da defesa, da educação, da cultura, da saúde e da produção e alimentação. 

Já na apresentação para a edição de 1965, Burchett denunciou a intervenção militar estadunidense, exigiu a retirada das tropas imperialistas, e defendeu a soberania popular do Vietnã. Finalmente, previu as condições organizativas para a vitória do povo vietnamita, mas em condições de acirramento da guerra imperialista, com o sacrifício de milhares de vietnamitas. Em 2018, comemoramos os 50 anos da decisiva ofensiva do Tet (véspera do ano lunar): em 31 de janeiro de 1968, um ataque surpresa de 80 mil guerrilheiros vietnamitas do norte e do sul reconquistou mais de 100 cidades tomadas pelo exército estadunidense. 

Já na Antiguidade, em A Guerra do Peloponeso, Tucídides nos mostra que liderar em tempos difíceis é também uma batalha de narrativas. Péricles, em Atenas, precisou conduzir não apenas exércitos, mas o espírito de uma democracia sob o cerco espartano e a praga. Sua liderança foi intelectual e moral, tentando sustentar os ideais da pólis mesmo quando a realidade os despedaçava. Em comum, esses exemplos mostram que, no passado, liderar era uma luta direta e visceral contra forças tangíveis que ameaçavam a existência do grupo. 

Exímio historiador militar, Victor Davis Hanson nos tem propiciado descrições meticulosas e inovadoras de guerras ocorridas desde a antiguidade clássica até o século XXI. Em Uma guerra sem igual, o escritor dá substância a um conflito de 30 anos a fim de torná-lo mais humano e, assim, permitir que a guerra seja mais do que uma remota luta de uma era distante. Ao longo de quase três décadas, há 2.400 anos, as cidades-estados helênicas de Atenas e Esparta envolveram-se em um conflito sangrento que resultou no colapso de Atenas. Embora o número de escritos sobre essa guerra seja vasto, Victor Davis Hanson nos oferece uma abordagem nova. De maneira cronológica, ele faz um relato completo que reflete os antecedentes políticos da época, trazendo também uma importante compreensão de como esses acontecimentos ecoam nos dias atuais.

O autor retrata como atenienses e espartanos lutaram na terra e no mar, em cidades e áreas rurais, e detalha o emprego de amplo escopo de táticas, desde sítios até assassinatos planejados, tortura e terrorismo. Também avalia os papéis cruciais desempenhados por guerreiros como Péricles e Lisandro; artistas como Aristófanes; e filósofos como Sófocles e Platão. A perceptiva análise de eventos e personalidades sugere muitas questões sobre as quais vale à pena refletir: foram Atenas e Esparta como os Estados Unidos e a União Soviética, dois superpoderes que lutaram duramente? A Guerra do Peloponeso teria ecos nos intermináveis e frustrantes conflitos no Vietnã, na Irlanda do Norte e no atual Oriente Médio? Ou teria sido mais semelhante à própria Guerra Civil americana, uma ruptura brutal que desfez o tecido de uma sociedade gloriosa, ou mesmo à cisma do presente século entre liberais e conservadores, uma guerra cultural que manifestamente controla políticas militares?

No Presente: Liderar é Liderar a Nós Mesmos 




 Os  desafios como explorado em  " Herança: As origens do mundo moderno" de Harvey Whitehouse" Humanamente possível: Sete séculos de pensamento humanista  " de Sarah Bakewell, são de outra natureza. O que nos desafia hoje, como humanos, não é (apenas) a sobrevivência física, mas a sobrevivência de um projeto civilizatório. 

Whitehouse investiga como os "modos de religião" – o doutrinário e o imagístico – moldaram a coesão social em larga escala. O desafio de ser liderado hoje reside em encontrar identidades comuns em sociedades pluralistas e globalizadas, superando os particularismos que nos dividem. Como liderar multidões em um mundo fragmentado por algoritmos e ideologias? A liderança precisa construir pontes entre visões de mundo radicalmente diferentes, algo que exige mais sabedoria do que autoridade. 

Em Herança, o renomado antropólogo Harvey Whitehouse oferece uma análise abrangente de como nossos vieses evolutivos moldaram o passado e ameaçam o futuro da humanidade. Ao revelar uma forma inovadora de entender nossa história coletiva ― que integra experimentos psicológicos, trabalho de campo em diversas regiões e big data ―, Whitehouse apresenta três vieses que impulsionam o comportamento humano: conformidade, religiosidade e tribalismo. 

Esses vieses catalisaram as maiores transformações da história humana, desde o nascimento da agricultura e a chegada dos primeiros reis até a ascensão e o declínio do sacrifício humano e a criação de impérios multiétnicos. Hoje, no entanto, eles estão nos levando à ruína. 

Em uma jornada fascinante pelo mundo dos povos da Papua-Nova Guiné, das milícias líbias e das agências publicitárias predatórias, Whitehouse mostra como os mecanismos que antes mantinham esses vieses sob controle estão falhando, gerando consequências devastadoras para toda a humanidade.  

Bakewell, por sua vez, resgata a tradição humanista, que coloca o ser humano, seus valores e seu potencial no centro. O grande desafio contemporâneo é ser liderado por – e para – essa ideia de humanidade. Em uma era de inteligência artificial, mudanças climáticas e crises éticas, a liderança deve resgatar a pergunta humanista fundamental: como viver uma vida boa? Como criar uma sociedade justa? Liderar hoje é guiar não pela força, mas pela persuasão ética, pela defesa da razão, da compaixão e da liberdade diante de forças desumanizadoras. 

Ao longo dos séculos, houve muitos humanistas. Foram estudiosos exilados, andarilhos que sobreviviam de expedientes e palavras. No início da era moderna, vários deles se complicaram com a Inquisição. Outros tentaram se manter a salvo escondendo o que pensavam, às vezes tão bem que até hoje não fazemos ideia do que achavam. Formas humanistas de pensamento emergiram de muitas culturas, numa densa nuvem semântica de significados e implicações, mas Bakewell acredita que exista uma tradição humanista coerente, compartilhada por pessoas unidas por fios multicoloridos. São esses fios que ela investiga neste livro. Apesar de sua imensa variedade, ela costura as qualidades que unem o pensamento humanista e explica por que ele tem um poder tão duradouro apesar da oposição de fanáticos, místicos e tiranos. 

 
De Cristina de Pisano a Bertrand Russell, de Voltaire a Arthur C. Clarke, de David Hume a Harriet Taylor Mill, Humanamente possível é um irrecusável convite à celebração do espírito humano, um livro crucial para o mundo polarizado em que vivemos hoje, além de uma leitura agradabilíssima. De um jeito leve, bem-humorado e ao mesmo tempo erudito, Sarah Bakewell resgata a melhor parte de sermos apenas... humanos. 


No Futuro: Liderar é uma Jornada Cósmica 

E o que nos aguarda no futuro? O livro "A Terra é Excepcional?" de Mario Livio coloca talvez o desafio de liderança mais profundo de todos. Se o Universo, de fato, "lidera os desafios e a expansão desde o início da vida", como sugere a premissa, nosso papel é o de aprendizes e parceiros nessa jornada cósmica. 

A busca por vida extraterrestre não é apenas uma empreitada científica; é um ato de liderança da espécie humana perante o cosmos. Liderar nesse contexto significa: 

  1. Liderar com Humildade: A possibilidade de a Terra ser excepcional nos força a abandonar qualquer arrogância antropocêntrica. Somos talvez apenas um experimento em um vasto universo de possibilidades. 

  1. Liderar com Visão: É mobilizar recursos e cérebros em prol de uma questão que transcende fronteiras nacionais: "Estamos sós?". Esta é a última fronteira da exploração e da curiosidade humana. 

  1. Liderar como Espécie: Encontrar vida além da Terra forçaria uma redefinição total da identidade humana. A liderança precisaria então unir o planeta sob uma nova consciência: a de que somos uma única civilização entre (possivelmente) muitas, com a responsabilidade de representar a vida de forma sábia no palco cósmico. 



Por muito tempo, cientistas se perguntaram como a vida pode ter emergido da química inanimada, ou se ela existe apenas na Terra. Charles Darwin especulou no século XIX sobre a vida como conhecemos ter começado em um lago morno. Alguns de seus contemporâneos acreditavam que havia vida em Marte. À época, parecia inevitável que, a essa altura, já teríamos essas respostas, o que ainda não aconteceu. 

No entanto, como o astrofísico Mario Livio e o biólogo molecular e ganhador do Nobel Jack Szostak revelam neste livro, o véu que ainda encobre esta questão está finalmente sendo levantado. Baseando-se em descobertas recentes, os autores explicam como os blocos fundamentais da vida ― como o RNA, os aminoácidos e as células ― poderiam ter surgido do caos primordial do planeta. Além disso, discutem de forma multidisciplinar a busca por vida além da Terra, considerando tanto formas que conhecemos como possíveis variações. 

Seria a vida o resultado de um acidente ou um imperativo químico? A Terra é excepcional? é uma reflexão profunda sobre a origem e o destino da vida no universo, escrita por dois dos principais pensadores sobre este tema na atualidade. 

“A situação mudou drasticamente nas últimas três décadas. As tentativas de responder a essas exatas perguntas ― Como começou a vida na Terra? Estamos sozinhos na Via Láctea? ― tornaram-se duas das fronteiras mais vibrantes e dinâmicas da investigação científica. 

Notavelmente, as respostas para essas questões dependem de uma terceira pergunta, que é relativamente simples de formular, certamente bem definida e sem dúvida possível de responder (pelo menos em princípio): qual é a probabilidade de surgir vida na superfície de um planeta potencialmente habitável?” 

 Conclusão 

A jornada da liderança, portanto, evolui do comando tático para a sobrevivência imediata, passando pela gestão da complexidade humana e de suas ideias, até chegar à representação de nossa espécie em um diálogo cósmico. De Shackleton no gelo, guiando seus homens para a segurança, à humanidade olhando para as estrelas em busca de seus pares, o fio condutor é a coragem de enfrentar o desconhecido. Liderar é, em última análise, manter o navio da esperança e da curiosidade à flutuar – seja no oceano congelado da Antártida, no mar turbulento das ideias ou no vazio silencioso e promissor do espaço. 



 

 

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