Alfabetizar uma criança em português e iniciá-la no letramento matemático são processos que, à primeira vista, percorrem trilhas distintas. No entanto, quando observados com profundidade, revelam-se jornadas gêmeas de construção de sentido, guiadas pelos mesmos princípios fundamentais. Ambos consistem em apresentar e dominar sistemas de símbolos que nos permitem decifrar, interpretar e interagir com o mundo.
A alfabetização, na visão de Magda Soares, vai além da simples decodificação de letras. É um processo que começa na fase pré-fonológica, onde a criança brinca com os sons da fala, progride para a consciência silábica, onde descobre que as palavras podem ser partidas em pedaços sonoros, e culmina na consciência grafêmica, estabelecendo a relação estável entre o fonema (som) e o grafema (a letra escrita).
Eu, professor de matemática, quando uso o Lego para as crianças montarem objetos, capto a essência desse processo. As peças soltas de Lego são análogas aos fonemas e sílabas. A criança experimenta, combina, percebe que alguns encaixes funcionam e outros não, e, gradualmente, constrói estruturas complexas a partir de unidades básicas. Isso é idêntico à "brincadeira com letras e palavras". Montar um castelo com blocos é um exercício análogo a formar uma palavra ou uma frase: é a construção de um significado a partir de elementos discretos.
As Diferenças e a Importância do Contexto e dos Afetos
A diferença primordial reside na natureza dos códigos: um é linguístico, carregado de subjetividade e contexto cultural; o outro é lógico-simbólico, regido por leis e relações abstratas. Contudo, ambos os processos são igualmente dependentes de um ecossistema de apoio. O contexto familiar e social, os afetos que envolvem a descoberta, e o apoio dos pais e amigos são o solo fértil onde a semente do conhecimento germina.
Uma criança que é imersa em um ambiente onde os livros são presentes, a leitura é um prazer e os rabiscos são celebrados, desenvolve uma relação positiva com a língua. Da mesma forma, a criança que é incentivada a contar os degraus, a dividir um bolo em fatias iguais ou a jogar jogos de tabuleiro que envolvem contagem, constrói uma base afetiva sólida com a matemática. Essa jornada é singular: alguns aprendem melhor brincando (como no Lego), outros se beneficiam de técnicas pedagógicas estruturadas, e há os autodidatas, que exploram os padrões por conta própria. O papel do educador é ser o arquiteto de experiências que honram essas múltiplas inteligências e estilos.
A minha percepção sobre a "relação entre forma e números" toca no cerne do letramento matemático. Se a língua portuguesa é a linguagem das ideias e das emoções, a matemática é a linguagem dos padrões, das quantidades e das formas do mundo físico. A geometria é a gramática dessa linguagem. Ao montar com Lego, a criança não só está contando peças (aritmética), mas também está internalizando conceitos de simetria, proporção, área e volume (geometria). Ela está, de forma concreta, "escrevendo" com formas e "lendo" as relações espaciais. Esse diálogo entre o concreto e o abstrato é fundamental, uma ideia também explorada por Piaget em suas obras sobre o desenvolvimento do pensamento lógico-matemático, onde a ação sobre os objetos é a gênese da abstração.
Letramento Digital: A Convergência das Linguagens
Os games e as tecnologias digitais representam o território contemporâneo onde essas duas linguagens convergem. Eles são a expressão máxima do letramento digital, que dialoga intimamente com o ensino de português e matemática. Em um jogo, o jogador deve ler instruções e narrativas (português), ao mesmo tempo que calcula recursos, trajetórias e gerencia variáveis (matemática). Um mundo aberto como o do Minecraft é um "Lego digital" infinito, um laboratório para a aplicação prática de conceitos de escala, lógica e planejamento. Esta abordagem ressoa profundamente com a pedagogia de Paulo Freire, para quem a educação deve partir da "palavra geradora" e do universo vocabular do educando. No século XXI, os games e as plataformas digitais são esse universo, tornando-se ferramentas potentíssimas para uma aprendizagem significativa e crítica.
Brincar com Palavras e Números Nos Ensina a Pensar
No cerne de tudo isso está a convicção de que brincar com palavras e números nos ensina a pensar. É o que Lev Vygotsky, em "Pensamento e Linguagem", demonstra com clareza: o pensamento e a linguagem se desenvolvem de forma interligada. A internalização dos signos linguísticos e matemáticos, mediada pela interação social, é o que possibilita o salto do pensamento concreto para o abstrato. A Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) – a distância entre o que a criança consegue fazer sozinha e com a ajuda de um parceiro mais capaz – é tão crucial para aprender a contar quanto para aprender a ler.
De forma complementar, John Dewey, em "Como Pensamos" e em suas reflexões sobre a natureza do pensamento, defende que aprender é um processo ativo de investigação, desencadeado por um problema real. Seja ao tentar equilibrar uma torre de Lego, seja ao decifrar o som de uma sílaba complexa, a criança está envolvida em um ciclo de ação, reflexão e reorganização mental. O "fazer", orientado por uma intencionalidade, é a própria essência do pensar. Emília Ferreiro, em "Psicogênese da Língua Escrita", corrobora essa visão ao mostrar que a criança não é um receptáculo passivo, mas um sujeito que constrói hipóteses sobre a escrita, de forma ativa e criativa.
Conclusão
Portanto, alfabetizar em português e promover o letramento matemático são dois lados da mesma moeda: a moeda da compreensão humana. Do Lego na sala de aula aos algoritmos de um jogo digital, da descoberta de uma nova palavra à resolução de um problema, o que está em jogo é a construção da capacidade de dar sentido ao mundo. Como educadores, nossa missão é criar pontes entre esses universos, formando um ambiente onde o afeto, o contexto e o brincar sejam os condutores para que cada ser humano possa, a seu modo, aprender a lógica das coisas e a poesia dos números, descobrindo-se, no processo, um ser pensante.
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