Publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP traz dossiês que tratam de avaliação, currículo, alunos imigrantes e violência nas escolas, entre outros assuntos
Publicado: 17/10/2025 às 16:52
Texto: Luiz Prado
Em sua recém-lançada edição número 115, a revista Estudos Avançados, publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, discute educação, imigração e violência. O conjunto de artigos apresentados nos dois dossiês da revista traz, entre outros assuntos, contribuições sobre inteligência artificial e inclusão, avaliações escolares e a educação em territórios controlados pelo tráfico e pela milícia. A revista está disponível gratuitamente, na íntegra, neste link.
Em sua recém-lançada edição número 115, a revista Estudos Avançados, publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, discute educação, imigração e violência. O conjunto de artigos apresentados nos dois dossiês da revista traz, entre outros assuntos, contribuições sobre inteligência artificial e inclusão, avaliações escolares e a educação em territórios controlados pelo tráfico e pela milícia. A revista está disponível gratuitamente, na íntegra, neste link.
O dossiê Educação básica abre com o artigo Inteligência artificial e inclusão de estudantes com deficiência na educação básica, de Ivan Cláudio Pereira Siqueira, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O artigo discute a legislação nacional sobre os direitos educacionais das pessoas com deficiência e trata de alguns aspectos da inteligência artificial generativa (IAG) que poderiam ajudar na efetivação dos direitos dessa população.
“Parte do desafio docente em relação à educação especial refere-se às diferentes necessidades de personalização e atendimento individualizado. Existe um marketing expansivo sublinhando que a IAG oferece múltiplos aplicativos com possibilidade de personalização, o que facilitaria sobremaneira a tarefa docente”, escreve Siqueira. “Num cenário otimista, brevemente docentes poderão não apenas personalizar exercícios, mas criar seus próprios aplicativos para manipular imagens, texto e vídeo visando à redução de barreiras às deficiências visuais, sonoras, intelectuais e outras. Entretanto, essas facilidades dificilmente se apresentarão sem custos de investimentos técnicos e financeiros para adequar os aplicativos aos objetivos educacionais. E, ainda, as preocupações éticas e jurídicas sobre a manipulação e uso de dados de estudantes.”
Inteligência artificial pode contribuir para inclusão, mas assunto ainda precisa de debates – Foto: phc.vctor/Freepik
Por sua vez, o texto Trajetória da pessoa negra na educação básica: adversidades e proposições para o enfrentamento apresenta dados sobre a educação da população negra no Brasil. A partir deles, Alexandre Dantas, Helton Souto Lima, Silvia Lima e Vidal Dias da Mota Júnior, todos ligados ao Instituto Dacor, apontam algumas ações para combater os problemas do atual estado de coisas da área.
Segundo os autores, “a trajetória e experiência da população negra no Brasil têm como marca a vivência de processos de desumanização, violência e exclusão”. Primeiro, no contexto do colonialismo e do sistema escravocrata, escrevem, mas também após a abolição, com a ausência de políticas públicas capazes de incluir os libertos na sociedade. “Tais processos criaram o alicerce e a estrutura de uma sociedade racista e identificada por uma grande desigualdade racial que é evidenciada nos mais diferentes aspectos e segmentos da vida e estrutura social”, apontam os pesquisadores.
Nesse quadro, o atual estado da educação, que não problematiza e não age sobre a desigualdade educacional entre estudantes negros e brancos ainda existente, serve para manter esse cenário. “É preciso admitir que as políticas públicas de educação não estão cumprindo com seus objetivos e chegando aos resultados esperados quando se trata da população negra”, escrevem os autores. “Elas não estão conseguindo dar conta do pleno acesso das crianças, adolescentes e jovens à educação, da aprendizagem desses estudantes dentro do tempo e dos conteúdos adequados; elas não estão agindo e contemplando as relações existentes nas escolas de modo que meninas e meninos negros tenham real noção de pertencimento, estejam livres e distanciados de práticas de bullying e de exclusão que encontram respaldo em práticas racistas; as políticas públicas de educação não têm conseguindo fazer que as escolas sejam ambientes institucionais seguros para o pleno desenvolvimento de estudantes negras e negros.”
O professor da Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb) Eduardo Deschamps contribui para as discussões com Para onde vai o ensino médio? Uma análise dos marcos legais e normativos de 2017 e 2024. O texto debate as motivações, os fundamentos, as mudanças e os impactos do “novo ensino médio”. O nome diz respeito ao conjunto de transformações vinculadas às Leis n. 13.415/2017 e n. 14.495/2024, às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que oferecem novas possibilidades de construção de currículos, na tentativa de atender às demandas e dar protagonismo aos estudantes em sua formação.
“Historicamente o ensino médio brasileiro sempre viveu um cenário de disputas e incertezas”, escreve Deschamps. “Quando se analisa a forma como o ensino médio foi sendo regulamentado no Brasil ao longo da história, pode ser observado que existe um contínuo processo de oscilação e discussão entre a oferta de uma formação diversificada e uma formação unificada ou politécnica.”
Discutindo as principais formulações da legislação e a maneira como elas vêm sendo implementadas, o autor conclui que, apesar dos avanços, o Brasil ainda enfrenta dificuldades para colocar sua educação básica no caminho das práticas consolidadas nos países com melhores índices educacionais. “Cabe registrar que, apesar das dificuldades enfrentadas na implementação do que foi proposto pela Lei n. 13,415/2017 a partir de 2022, notadamente em virtude da pandemia de covid entre 2020 e 2021 e da falta de um apoio efetivo do MEC para as redes públicas e privadas, houve um grande esforço por parte dos sistemas de ensino para viabilizar a oferta do novo ensino médio”, salienta Deschamps.
Em outro artigo, Maria Helena Guimarães de Castro, professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e titular da Cátedra Instituto Ayrton Senna de Inovação em Avaliação Educacional do IEA, trata do futuro das avaliações educacionais no Brasil, fazendo um balanço dos debates sobre suas inovações e trazendo sugestões para seu aperfeiçoamento.
“O Brasil desenvolveu um robusto sistema de avaliação da educação básica nos últimos 30 anos, que teve importante papel na implementação das políticas educacionais do País”, escreve Maria Helena. “Embora os resultados das avaliações apontem para inúmeros desafios no enfrentamento das desigualdades e melhoria da qualidade e da equidade dos sistemas de ensino, não há dúvida que houve avanços importantes, especialmente em termos de acesso e melhoria dos indicadores educacionais desde a educação infantil até a inclusão no ensino superior.”
Para a catedrática, as principais tendências do futuro das avaliações podem ser resumidas em seis abordagens. A primeira delas envolve as avaliações adaptativas e personalizadas. Depois, as avaliações contínuas e formativas. Em terceiro lugar, as avaliações de competências socioemocionais. Maria Helena indica ainda a tendência ao uso da inteligência artificial e análise de dados, à gamificação e à realidade virtual e aos portfolios digitais e evidências multimídia.
“A premissa básica é que as mudanças na sociedade contemporânea e as profundas transformações no mundo do trabalho requerem capacidades que vão além da educação tradicional”, explica a catedrática no artigo. “Argumenta-se que a educação deve assegurar não somente uma sólida formação centrada na solução de problemas e nos conhecimentos disciplinares para todos os cidadãos, mas também desenvolver suas habilidades analíticas, criativas e de pensamento critico que reforcem habilidades mais gerais em relação a si mesmo e ao próximo, como habilidades sociais e emocionais, tolerância e respeito mútuo, foco e capacidade de autocontrole, e entendimento mais amplo de seus próprios processos de pensamento e aprendizagem.”
Imigração e violência
O segundo dossiê da revista, Imigração, educação e violência, abre com o artigo Estudantes de origem imigrante no ensino médio público: o desempenho escolar em questão, é de Lineu Kohatsu, doutor pelo Instituto de Psicologia (IP) da USP. Kohatsu apresenta uma pesquisa realizada numa escola estadual da cidade de São Paulo que reúne considerável número de estudantes de origem imigrante. Interessado em investigar o desempenho escolar dos alunos, o autor analisou as notas registradas em seus boletins e também realizou entrevistas com os jovens.
A análise de Kohatsu se concentrou sobretudo nos estudantes bolivianos e filhos de bolivianos das turmas do terceiro ano do ensino médio e da educação de jovens e adultos (EJA). O autor entrevistou os alunos com as melhores e com as piores notas, interessado em entender os motivos para a diferença em seus resultados.
“Diferentemente do que apontaram muitos estudos, a condição migrante não significa necessariamente um fator de desvantagem se os estudantes puderem contar com apoio das escolas, dos professores e dos colegas para o enfrentamento das inúmeras barreiras que surgem ao longo da trajetória escolar”, escreve Kohatsu. “Com o devido apoio, podem apresentar desempenho escolar semelhante aos dos nacionais e, em alguns casos, até se destacarem, tal como ocorreu com alguns dos participantes deste estudo.”
Além do apoio da escola, indica o autor, o suporte e a cobrança familiar também aparecem como um dado fundamental para que os estudantes com melhores notas entrevistados tenham perseverado em seus estudos. “Contrariando as previsões de várias pesquisas, apesar das dificuldades, da situação socioeconômica desfavorável e do baixo capital cultural das famílias, os entrevistados conseguiram passar pelo estreito e excludente funil do sistema escolar e concluir a educação básica no Brasil. E, mais do que isso, seguiram com anseios de continuar os estudos almejando melhores perspectivas de vida.”
Maria da Conceição Pereira Ramos, professora da Universidade do Porto (UP), e Nátalia Ramos, professora da Universidade Aberta (Uab) de Lisboa, ambas em Portugal, por sua vez, miram sua atenção para a situação dos imigrantes na Europa, como mostram no artigo Olhares e perspectivas sobre educação e imigração em Portugal: do ensino básico ao ensino superior.
De acordo com as pesquisadoras, a presença de alunos imigrantes e descendentes de imigrantes traz para o contexto português desafios quanto à sua integração, adaptação e ascensão social. As maiores desigualdades são vistas entre afrodescendentes e portugueses, sendo que os estrangeiros desfavorecidos apresentam mais reprovações, risco de abandono escolar, notas mais baixas, menor permanência no ensino médio e menor taxa de ingresso no ensino superior.
“A escola tem um papel fundamental na promoção da igualdade de oportunidades, e a educação é o principal fator de redução das desigualdades, especialmente para os migrantes”, escrevem as pesquisadoras. “A questão da imigração e da educação constitui um dos grandes desafios contemporâneos. É importante promover medidas relativas ao acolhimento e integração de imigrantes e descendentes de imigrantes na área educativa, desenvolver a educação intercultural nas escolas, combater o insucesso e abandono escolar e a discriminação étnico/cultural, religiosa e de gênero e fortalecer a formação do corpo docente.”
Segundo as autoras, para reduzir a discrepância entre crianças e jovens portugueses e imigrantes é preciso aumentar os investimentos e as melhorias na orientação escolar, apoiar as crianças e famílias desfavorecidas e reforçar o ensino da língua portuguesa como língua não materna. “As escolas e a comunidade em geral devem dar prioridade a intervenções precoces para enfrentar os desafios educacionais dos alunos imigrantes, gerir e mitigar a concentração e segregação dentro de cada escola, assim como refletir sobre o futuro acadêmico e profissional desses alunos”, apontam. “É necessário implementar medidas para favorecer o seu acesso ao ensino superior e incrementar apoios sociais no ensino superior público para os jovens de condições sociais mais desfavorecidas.”
Apoio da família é fundamental para o desempenho dos estudantes de origem imigrante.
Em outra contribuição para o dossiê, o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Rogério Jerônimo Barbosa, ao lado de outros oito autores, investiga como a exposição à violência afeta o desempenho escolar das crianças e dos adolescentes no Rio de Janeiro. Esse é o tema do texto Educação sob cerco: impactos do controle territorial do tráfico e da milícia sobre o desempenho escolar.
Conforme indicam os autores, a presença de grupos armados em um território altera a rotina de moradores, comerciantes e instituições públicas sem deixar as escolas de fora desse cenário. Conflitos levam ao seu fechamento temporário, à interrupção de aulas e à descontinuidade no aprendizado. Contudo, os diferentes grupos que podem dominar uma região trazem efeitos diversos, apontam os pesquisadores. “O tipo de grupo armado (milícia ou tráfico) que controla o território escolar impacta de maneira diferenciada o desempenho dos estudantes. Nossos achados sugerem que até mesmo escolas que atendem a alunos de estratos socioeconômicos mais elevados são fortemente afetadas. Ou seja, haveria uma anulação dos efeitos socioeconômicos das famílias em áreas dominadas por grupos.”
A pesquisa descrita pelos autores revela que as áreas controladas pelas milícias são as que mais sofrem perdas no desempenho escolar, com mais efeitos sobre adolescentes do que crianças. “O controle do tráfico expõe as comunidades a mais situações de violência aguda. As milícias, aos efeitos de longo prazo de um estado de controle permanente. Essa distinção pode ser a chave para explicar os efeitos mais pronunciados do domínio da milícia sobre o aprendizado e expande o entendimento acerca das formas de atuação desses grupos”, escrevem os autores.
“Nossos achados sugerem que intervenções educativas em áreas dominadas por grupos armados devem levar em consideração as especificidades desses contextos. O desenvolvimento de políticas integradas de segurança e educação é crucial – não apenas onde o tráfico é atuante, mas especialmente em áreas onde as milícias têm presença mais forte; o que, como vimos, traz efeitos mais deletérios.”
Tráfico e milícia afetam a realidade escolar no Rio de Janeiro
Estudos Avançados, número 115, Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, 400 páginas
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