SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Entre Pontes e Abismos: A Escola de Frankfurt, Seus Outros e a Educação para um Pensamento Complexo por Egidio Guerra



A Crítica Desmonta a Casa: Frankfurt, Seus Antecessores e Seus Desdobramentos 

Para entender a Escola de Frankfurt, é preciso situá-la não apenas em relação aos seus contemporâneos, mas também na grande tradição que ela herdou e transformou. 

I. A Escola de Frankfurt: A Herança Negativa do Iluminismo 

Os pensadores de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Marcuse, Benjamin, Fromm) partilhavam um projeto comum: a Teoria Crítica. Diferente da "teoria tradicional" (que busca compreender o mundo de forma neutra), a Teoria Crítica visa transformá-lo, diagnosticando as patologias da sociedade moderna. Seu alvo principal é a Razão Instrumental. 

  • Kant e Hegel: A Base e a Ruptura 


  • Kant é o ponto de partida. Seu projeto do "Esclarecimento" ("Sapere aude!" – "Ouse saber!") era a crença na razão autônoma como caminho para a liberdade. Os frankfurtianos veem essa autonomia como corrompida. A razão que deveria emancipar tornou-se um instrumento de cálculo, controle e dominação (da natureza, dos seres humanos). 


  • Hegel lhes fornece o método dialético – a ideia de que a realidade avança através do conflito e da superação de contradições (tese, antítese, síntese). No entanto, eles rejeitam o "espírito absoluto" de Hegel, sua noção de que a história marcha rumo a uma reconciliação final e racional. Para Adorno, a síntese é uma ilusão perigosa; a verdade está no negativo, no não-identificado, no que escapa ao sistema. 


  • Os Membros da Escola e Seus Ênfases: 


  • Theodor Adorno: O mais radical na sua negatividade. Pensar, para ele, é resistir à lógica identitária que força o diferente e o particular a se encaixar em conceitos universais. Sua frase "Não há vida certa na falsa" sintetiza a impossibilidade da autenticidade numa sociedade totalmente administrada pela Indústria Cultural. 


  • Walter Benjamin: Um pensador mais messiânico e fragmentário. Enquanto Adorno via a cultura de massa com desconfiança, Benjamin (em "A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica") via potencial emancipatório na reprodutibilidade (como no cinema), que poderia destruir a "aura" da arte e democratizá-la. 


  • Herbert Marcuse: O grande crítico da "dessublimação repressiva" – a sociedade capitalista avançada concede prazeres e falsas liberdades (sexuais, de consumo) que, na verdade, anestesiam o desejo de transformação radical e fortalecem o sistema. 


  • Erich Fromm: Focou na psique, analisando o "medo à liberdade" que leva as pessoas a fugir para a segurança de sistemas autoritários (como o nazismo) ou para a "conformidade automatizada" do consumidor. 

Em resumo, a Escola de Frankfurt faz uma crítica imanente da modernidade: usa as ferramentas da razão (herdadas de Kant e Hegel) para expor como a própria razão se tornou irracional quando divorciada de seus fins humanos e emancipatórios. 

II. Os Outros Pensadores: Diálogos e Abismos 

A diferença entre o pensar dos frankfurtianos e dos outros filósofos reside no seu ponto de partida e no seu objeto de crítica. 

  • Jacques Derrida e a Desconstrução: Enquanto Adorno buscava uma "não-identidade" dentro do sistema dialético, Derrida ataca a base da metafísica ocidental: o logocentrismo. A desconstrução não é um método de crítica social, mas uma operação textual que revela como todos os conceitos são instáveis e dependem da exclusão de um "outro". É um passo além da dialética: não há síntese possível, apenas um jogo infinito de significados. 


  • Michel Foucault e as Micro-Relações de Poder: Foucault compartilha a desconfiança no Iluminismo, mas desloca o foco. Para ele, o problema não é apenas a "razão instrumental", mas as redes de poder-saber que permeiam toda a sociedade e constituem o próprio sujeito. O poder não é só repressivo (como o Estado em Marx), é produtivo: produz normas, saberes e subjetividades. Sua análise é genealógica (sobre a origem de práticas) e arqueológica (sobre as estruturas do discurso), não dialética. 


  • John Dewey e o Pragmatismo: Dewey também via a filosofia como uma ferramenta para os problemas da vida. No entanto, seu pragmatismo é otimista e experimental. Ele acreditava na inteligência coletiva e na democracia como um processo contínuo de aprendizado e ajuste. Rejeitaria o pessimismo adorniano em favor de uma crença na capacidade da experiência e da educação de reconstruir o mundo. 


  • Parmênides e o Abismo da Metafísica: O eleata Parmênides representa o oposto absoluto do pensamento contemporâneo. Ele postulou o "Ser" como uno, imutável, eterno e imóvel. Toda a filosofia posterior, de Heráclito (seu rival, que dizia "tudo flui") até a pós-modernidade, é, de certa forma, uma resposta a este desafio. A Teoria Crítica e a Desconstrução são, em essência, filosofias da mudança, da diferença e da negatividade – o reino do "não-ser" que Parmênides excluiu. 


  • Ilya Prigogine e a Nova Aliança com a Natureza: Prigogine, um químico e físico, oferece uma base científica para o pensamento da complexidade. Sua teoria das estruturas dissipativas (sistemas que se auto-organizam longe do equilíbrio) mostra que a desordem, o tempo e a irreversibilidade são fatores criativos na natureza. Ele corrobora Heráclito contra Parmênides e oferece um modelo científico que dialoga diretamente com a visão frankfurtiana de uma natureza não-dominada e com a ideia derridiana de que a instabilidade é constitutiva. 

III. Educando para o Pensamento Complexo: A Arte de Tecer Pontes 

Como educar pessoas para navegar nesse arquipélago de pensamentos, criando diálogos entre Ciência, Filosofia, Política, Arte, Espiritualidade, Natureza e Tecnologias? 

  1. Do Currículo Fragmentado à Pedagogia de Problemas: Em vez de ensinar disciplinas estanques, organizar o aprendizado em torno de problemas complexos do mundo real. Exemplo: "A Crise Climática". 


  1. Ciência (Prigogine): Compreender a Terra como um sistema complexo e não-linear, com pontos de não-retorno. 

  1. Filosofia/Política (Frankfurt, Foucault): Analisar a "dominação da natureza" (Adorno), o "biopoder" que gere populações e recursos (Foucault), e a lógica do crescimento infinito. 

  1. Arte (Benjamin): Explorar como a arte pode servir como "sensorium" da crise, criando novos modos de percepção e conscientização. 

  1. Espiritualidade: Incluir visões indígenas e orientais de interdependência com a natureza, contrastando com a visão antropocêntrica ocidental. 

  1. Tecnologias: Debater criticamente o papel das "tecnologias verdes" – são uma solução ou perpetuam o mesmo paradigma de controle instrumental? 


  1. Cultivar a Literacia Crítica Midiática (Contra a Nova Indústria Cultural): A "Indústria Cultural" de Adorno evoluiu para os algoritmos das redes sociais e o capitalismo de vigilância. Educar significa ensinar a desconstruir (Derrida) as narrativas dominantes, identificar os mecanismos de poder (Foucault) por trás dos dados e entender a razão instrumental embutida nas plataformas. 


  1. A Experiência Estética como Âncora da Negatividade: Seguindo Adorno e Benjamin, a educação deve reservar um espaço central para a arte não como entretenimento, mas como experiência de resistência. A arte que desafia, perturba e não se deixa facilmente digerir é um treino vital para a tolerância à ambiguidade e a abertura ao outro. 


  1. A História da Filosofia como uma Conversa Viva: Apresentar Kant, Hegel, Parmênides não como "respostas" definitivas, mas como interlocutores em um diálogo permanente. Mostrar como a pergunta de Parmênides ("O que é o Ser?") ecoa em Derrida, e como a resposta de Hegel à contradição é desmontada por Adorno.

  2.  

  1. Integrar os Saberes da Complexidade: Usar a ciência de Prigogine como uma ponte natural entre as humanidades e as ciências duras. Ela demonstra que a incerteza, a transformação e a criatividade não são apenas categorias humanas, mas são leis fundamentais do universo. 

Conclusão 

A jornada do pensamento, de Parmênides a Prigogine, é a passagem de um mundo estático e uno para um universo de multiplicidades, fluxos e negatividades. A Escola de Frankfurt ocupou um lugar crucial nessa transição, usando as ferramentas da tradição (Kant, Hegel) para demolir a casa que essa mesma tradição construiu. 

A educação para o nosso tempo não pode ser doutrinária, ensinando uma única "forma correta" de pensar. Ela deve ser arte da tradução e da conexão. Deve equipar cada indivíduo com um kaleidoscópio de lentes: a lente da crítica social (Frankfurt), a lente da desestabilização conceitual (Derrida), a lente da análise do poder (Foucault), a lente da experimentação democrática (Dewey) e a lente da complexidade natural (Prigogine). Só assim poderemos formar seres humanos capazes de não apenas entender a complexidade do mundo, mas de tecer, ativamente, as pontes dialógicas necessárias para enfrentá-la com sabedoria, criatividade e esperança. 

 

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