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domingo, 5 de outubro de 2025

O rei que morreu quando ia beijar seu sobrinho, em crime que abalou a Arábia Saudita há 50 anos


Retrato oficial do rei Faisal, da Arábia Saudita

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,O rei que desafiou o Ocidente morreu cumprimentando seu sobrinho
    • Author,Louise Hidalgo
    • Role,Série "Witness History", Serviço Mundial da BBC

"Nunca me esquecerei daquele dia: absorvi toda aquela dor do meu pai."

"Imagine: um ser humano, de pé ao lado do seu mentor, seu mestre, seu amigo e alguém atira, ali, tão perto", declarou à BBC a doutora Mai Yamani.

Ela recordava o ocorrido no dia 25 de março de 1975.

Naquela data, o rei Faisal da Arábia Saudita (1906-1975) recebeu três disparos à queima-roupa, em rápida sucessão, enquanto cumprimentava e dava as boas-vindas ao seu sobrinho.

O pai de Mai Yamani, o xeque Ahmed Zaki Yamani (1930-2021), era um ministro leal ao monarca há O rei Faisal era o terceiro governante do reino do deserto e o terceiro filho do seu fundador. Ele foi transportado com urgência ao hospital, mas morreu pouco depois.

Mai Yamani tinha então 18 anos. E, a alguns quilômetros dali, ela esperava seu pai.

"Eu estava sentada no apartamento do meu pai, rodeada pelos seus livros", relembra ela.

"Ele entrou com uma expressão muito estranha e dolorosa no rosto. Foi diretamente à sala de jantar, soltou um grito e só conseguiu dizer uma palavra: 'Calamidade!'"

Aquele não era um comportamento normal do seu pai. O xeque tinha fama de ser muito tranquilo, de falar em voz muito baixa. Ele então contou a ela o que havia acontecido.

"Às 10 horas da manhã, uma delegação petrolífera do Kuwait iria se reunir com o rei Faisal no palácio", ela conta, "e meu pai, que era ministro do Petróleo, foi fornecer ao rei as informações necessárias."

"Esse príncipe, ironicamente com o mesmo nome [príncipe Faisal Ibu Musaed, 1944-1975], entrou com o ministro do Petróleo do Kuwait e o rei abriu os braços para abraçar seu sobrinho, que tirou uma pequena pistola do seu bolso e disparou."

"Três disparos na cabeça."

O então presidente americano Franklin Delano Roosevelt reunido com o rei Ibn Saud, da Arábia Saudita, o chefe do Estado-Maior americano William D. Leahy (de joelhos) e o coronel William A. Eddy, a bordo do navio USS Quincy no canal de Suez, Egito, no dia 14 de fevereiro de 1945.

Crédito,Hulton Archive via Getty Images

Legenda da foto,A vítima era filho do rei saudita Ibn Saud (c.1877-1953), aqui fotografado com o ex-presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt (1882-1945). Ibn Saud unificou e fundou a Arábia Saudita em 1932, após 30 anos de lutas

Um dos guarda-costas do rei golpeou o príncipe com sua espada, ainda embainhada.

Os relatos foram de que o xeque Yamani ordenou aos guardas que não matassem o príncipe. Mas outras informações da época dizem que o agressor declarou à polícia que o xeque estava tão perto do rei que ele acreditou também tê-lo matado.

Mas não foi o que aconteceu. O rei Faisal ainda estava vivo e o xeque Yamani o acompanhou ao hospital. Ali, o rei morreu, apesar dos esforços dos médicos para salvá-lo.

"Depois disso, tudo ficou em silêncio", recorda Mai Yamani. "As ruas de Riad estavam vazias."

O rei do deserto

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Faisal havia se tornado rei da Arábia Saudita em 1964.

O reino era um deserto do tamanho da Europa ocidental. E, como seu governante, ele se propôs a modernizar o país, um dos mais atrasados do Oriente Médio.

Faisal era um dos filhos mais velhos de Abdulaziz al-Saud (c.1877-1953). Ele havia lutado na campanha do pai para unir a Península Arábica, que levou à fundação do reino que leva seu nome, a Arábia Saudita, 30 anos antes.

Mais tarde, Faisal se tornou primeiro-ministro sob so comando de seu irmão mais velho, Saud (1902-1969), que se tornou rei com a morte do pai.

Ao assumir o trono, Faisal já era conhecido por ser um político astuto, piedoso, trabalhador e reformador.

Um homem acostumado a comercializar nas capitais de outros países pelo mundo. E um governante que queria usar a recém-descoberta riqueza em petróleo do país para levar à Arábia Saudita as vantagens de uma educação estatal moderna, serviços de saúde e um sistema judiciário.

Mas as reformas do rei Faisal nem sempre agradaram aos elementos mais conservadores da austera escola do Islã, à qual sua família era aliada.

Ahmed Zaki Yamani frente a um microfone, rindo

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,O xeque Ahmed Zaki Yamani, ministro do Petróleo da Arábia Saudita, fotografado durante o embargo ao petróleo árabe, ocorrido em 1973

Em meados dos anos 1960, o rei Faisal inaugurou a primeira emissora de televisão da Arábia Saudita. Na ocasião, houve um ataque armado contra o edifício, dirigido pelo irmão do homem que, mais tarde, o assassinaria.

Mas, na época, Faisal já havia feito e continuaria fazendo contribuições significativas, mesmo em campos até então intocados, como a educação das mulheres.

Em 1956, quando ainda era o príncipe herdeiro, o rei inaugurou a primeira escola estatal regular para meninas, sob o patrocínio da sua esposa Iffat (1916-2000).

"A rainha Iffat deu início à educação para meninas no Reino da Arábia Saudita e, para mim, é motivo de orgulho dizer que fui uma das nove primeiras alunas da sua escola, que se chamava Dar Al Hanan, a Escola da Ternura", conta Mai Yamani.

"O rei Faisal convenceu o setor religioso de que, educando as mulheres, elas se tornariam melhores mães."

Um reino poderoso

O pai de Mai Yamani começou a trabalhar para o rei Faisal em 1960. Era algo incomum, pois, embora fosse advogado e tivesse alto nível educacional, ele era plebeu e não fazia parte da família real saudita.

Mas o rei Faisal havia lido alguns artigos escritos por Yamani, que chamaram sua atenção.

"Meu pai abriu o primeiro escritório de advogados e logo começou a escrever artigos muito provocadores, pedindo democracia e boa governança", relembra ela.

"Então, Faisal, que era o príncipe herdeiro e procurava um assessor jurídico, perguntou: 'Quem é este homem?'"

Posteriormente, o rei Faisal nomearia o xeque Yamani, como ficou conhecido, seu ministro do Petróleo.

Juntos, o rei e o súdito elaboraram uma política que, pela primeira vez, forneceu ao reino o controle total do seu imenso patrimônio petrolífero e o transformou em uma potência respeitada no mundo árabe e no cenário internacional.

Cartaz em posto de gasolina, dizendo: "Desculpe, não há gasolina" (em inglês)

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,A crise energética da década de 1970, causada pela escassez e pelos altos preços do petróleo, impulsionou a primeira mudança rumo a tecnologias para economizar energia

Em 1973, depois da guerra entre Israel e seus vizinhos árabes, a Arábia Saudita (na época, o maior produtor de petróleo do mundo) liderou a campanha para usar o petróleo, pela primeira vez, como arma política.

O fornecimento de petróleo para os países que apoiavam Israel foi reduzido, fazendo com que os preços mundiais do petróleo disparassem. E o xeque Yamani foi encarregado de transmitir a mensagem.

"O que queremos é a retirada completa das forças israelenses dos territórios árabes ocupados e, então, vocês terão petróleo ao mesmo nível de setembro de 1973", explicou ele na época à BBC.

O enorme aumento dos preços do petróleo trouxe uma mudança no equilíbrio de poder mundial entre os países em desenvolvimento, como eram chamados na época, os produtores e as nações industrializadas.

Esta mudança de equilíbrio do poder foi reconhecida em 1974 (o ano anterior à sua morte), quando o rei Faisal foi declarado "Homem do Ano" pela revista Time.

Depois do assassinato

O príncipe Faisal Ibu Musaed foi capturado imediatamente após o ataque ao tio. Ele foi interrogado e os médicos psiquiatras acreditaram que ele sofria de um "desequilíbrio mental".

Foi informado que o príncipe estava tranquilo, antes e depois do assassinato.

Muitos homens caminhando no funeral do rei Faisal, da Arábia Saudita

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Inúmeros chefes de Estado assistiram ao funeral do rei Faisal, da Arábia Saudita. Ao lado do seu sucessor, o rei Khalid (1913-1982), o líder da OLP, Yasser Arafat (1929-2004), e o presidente do Egito, Anwar al-Sadat (1918-1981)

Após o assassinato, a capital da Arábia Saudita, Riad, permaneceu completamente fechada durante três dias de luto.

O rei Khalid (1913-1982), irmão do rei assassinado, ocupou seu lugar mediante acordo da família real saudita. E o príncipe Faisal Ibu Musaed foi posteriormente declarado culpado pelo assassinato do rei.

Em junho de 1975, ele foi decapitado em praça pública em Riad, segundo o método tradicional de execução da Arábia Saudita, baseado na lei islâmica.

"Não sabemos qual foi o verdadeiro motivo do assassinato do rei, além do fato de que o assassino era um homem perturbado." O príncipe Musaed foi declarado oficialmente louco, segundo um "acordo emitido pelo gabinete real".

Ele levou para o túmulo os motivos que o levaram a matar seu tio, mas houve especulações de que ele tentou vingar a morte do seu irmão mais velho, Khalid, em um enfrentamento com as forças de segurança em 1966.

Surgiram também teorias da conspiração, mas uma investigação posterior declarou que o príncipe Faisal Ibu Musaed agiu sozinho.

O xeque Yamani se manteve no posto de ministro do Petróleo da Arábia Saudita por mais 11 anos, até 1986.

Mai Yamani cursou a universidade nos Estados Unidos e se tornou a primeira mulher saudita a obter um doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido.

Ela escreveu diversos livros sobre a identidade árabe e também atuou como consultora de bancos, como o Goldman Sachs, e companhias petrolíferas, como a Shell.

Ouça aqui o episódio do programa de rádio Witness History, do Serviço Mundial da BBC (em inglês), que deu origem a esta reportagem.15 anos e estava ao seu lado durante o ocorrido.


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