
- Pablo Uchoa
- Especial para a BBC News Brasil em Londres
A confirmação do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de que autorizou a agência de inteligência CIA a conduzir "operações secretas" dentro da Venezuela pode ser um ponto de inflexão grande nas relações Estados Unidos-Venezuela — com Washington mostrando que está disposto a escalar a tensão a níveis inéditos.
Durante uma entrevista no Salão Oval da Casa Branca na quarta-feira (15/10), Trump reafirmou que os EUA "estão analisando operações em terra" para combater operações de narcotráfico com origem na Venezuela que, segundo ele, ameaçam a segurança nacional dos Estados Unidos.
Até agora, os EUA vêm realizando apenas operações marítimas contra embarcações próximas ao litoral da Venezuela.
Apesar do papel minoritário da Venezuela no tráfico de drogas com destino aos EUA, forças americanas afundaram pelo menos cinco barcos acusados de transportar drogas próximo à costa venezuelana nas últimas semanas, matando 27 pessoas. Especialistas em direitos humanos nomeados pela ONU criticaram as ações como "execuções extrajudiciais".
A declaração mais recente de Trump indica que o conflito pode entrar agora em uma fase "terrestreJá a ativista de oposição venezuelana, María Corina Machado — que vive escondida desde o ano passado e na semana passada ganhou o Prêmio Nobel da Paz —, afirmou neste mês que o conflito partia para uma "fase de resolução".
Fase de desestabilização
O governo americano não divulgou detalhes sobre que tipos de operações poderia estar planejando para a Venezuela.
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O histórico de ações da agência na América Latina e no mundo inclui sabotagens, infiltrações e campanhas de desestabilização.
O que se sabe é que o governo americano vem aumentando a pressão ao crime organizado venezuelano — e até mesmo acusando o governo venezuelano de apoiar esses grupos.
Em fevereiro deste ano, o Departamento de Estado classificou a organização "Tren de Aragua" como grupo terrorista.
O governo Trump chegou a acusar o próprio Maduro de comandar a organização criminosa, embora documentos da própria inteligência americana obtidos pela Freedom of the Press Foundation diga que não há evidências disso.
Mas ainda não se sabe qual seria o alcance da ação da CIA na Venezuela. Será que uma ação da CIA autorizada por Trump poderia, por exemplo, levar ao assassinato de membros desse grupo? Ou até mesmo executar uma chamada "operação de bandeira falsa" — um ato hostil feito apenas para culpar Maduro e justificar uma operação militar?
Sabe- se que há décadas atrás, em outros momentos histórico, a CIA já cogitou atos semelhantes. Documentos americanos mostram que em 1962 a agência propôs orquestrar atos de terrorismo contra alvos americanos para culpar Cuba e justificar uma guerra — em uma operação conhecida como Northwoods, que nunca foi adiante.
Agora um passo importante parece ter sido dado para ações mais decisivas da CIA na Venezuela com o surpreendente anúncio de Trump na Casa Branca sobre operações secretas.
O ex-oficial da agência Mick Mulroy, que foi Subsecretário Adjunto de Defesa para o Oriente Médio no primeiro governo Trump, disse à BBC: "Para conduzir ações secretas, é necessária uma decisão presidencial da CIA autorizando-a especificamente, com ações específicas identificadas".
'Zona cinzenta'

Na Venezuela, os sinais que vêm da Casa Branca estão sendo recebidos com bastante alarme.
Há anos a Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) vem se preparando para a possibilidade de alguma ação militar contra a Venezuela.
Desde 2019, eu pesquiso documentos estratégicos das forças armadas venezuelanas. E alguns deles dão pistas de como os militares venezuelanos estão atentos a sinais vindos de Washington.
Segundo os documentos, o "período de crise" que antecederia uma guerra é descrito como um lapso de várias semanas ou meses marcado por ações hostis, ciberataques, campanhas de desestabilização e até uma possível subversão armada e um bloqueio militar.
O intuito destas ações seria desestabilizar a Venezuela e iniciar o desgaste sistemático contra o governo de Caracas.
Diante disso, uma possível resposta militar venezuelana seria o começo da preparação da chamada Milícia Bolivariana — um ramo especial das forças armadas venezuelanas formado principalmente por civis, organizado para a defesa integral do país.
Os documentos venezuelanos que tratam de um cenário de conflito indicam que a fase seguinte —chamada de "primeira fase da guerra" — seria marcada por um aprofundamento das operações de desgaste sistemático e poderia incluir operações terrestres e ataques aéreos limitados.
O objetivo americano, de acordo com os cenários avaliados pelos militares venezuelanos, seria criar uma "zona cinzenta" — um momento em que ações estratégicas são tomadas em um espaço ambíguo entre guerra e paz.
Guerra assimétrica
A natureza híbrida deste cenário, muito mais centrado em operações militares não-convencionais que um enfrentamento bélico direto, explica por que a mobilização atual do governo venezuelano tem se centrado na chamada "mobilização popular".
Em um vídeo recente postado nas redes sociais oficiais, civis à paisana recebem treinamento em sistemas de armamentos antitanques caso tenham de "neutralizar sistemas de blindados", explica um oficial da Força Armada Nacional Bolivariana (FANB).
Há relatos da distribuição de armas a civis comprometidos a defender a Venezuela de uma "guerra não declarada" por parte de Washington. Uma reportagem da BBC News Brasil do mês passado mostrou como é feito o treinamento de civis venezuelano para um possível conflito.
A atual doutrina militar venezuelana tem origens em 2002, quando os EUA apoiaram uma tentativa de golpe contra o ex-presidente Hugo Chávez.
Depois daquele episódio, por volta de 2004, o governo venezuelano começou a definir o que se tornaria a doutrina militar bolivariana atual — já reconhecendo sua total impossibilidade de vencer um inimigo muito mais potente.
Esta doutrina se inspira nas estratégias da chamada "guerra assimétrica" de várias partes do mundo, do Vietnã e Cuba até o Iraque e o Afeganistão. Nesta concepção maoista, aplicada e desenvolvida pelos revolucionários vietnamitas, a assimetria das forças em combate e a irregularidade das formações determinam as estratégias do campo de batalha.
Enquanto a guerra tradicional envolve o controle de posições, a guerra assimétrica aceita a perda de território em um primeiro momento a fim de armar a resistência e engajar o inimigo em uma guerra de desgaste a longo prazo.
O objetivo não é vencer com um golpe só, mas tornar a guerra insustentável para o inimigo, a exemplo dos conflitos contra forças americanas no Iraque e no Vietnã.
Para tanto, essa estratégia borra as fronteiras entre campo de batalha e sociedade, entre soldado e cidadão. A chamada "guerra popular" busca aproveitar o conhecimento dos cidadãos do seu próprio território e a motivação de defender a nação de uma invasão estrangeira.
O próprio Chávez traçou paralelos entre a guerra do Iraque e a experiência guerrilheira na América Latina, destacando-as como fontes de inspiração para a doutrina bolivariana.
"Quando vemos os gringos lá em Fallujah, destruindo aquela cidade, pensamos: se algo semelhante nos acontecesse, bem, teriam de nos caçar nas montanhas de Turimiquire, de Falcón, de Lara", disse Chávez em 2004. "Que nos procurem no Pico Bolívar, nas selvas da Guiana!"
O papel da Milícia Bolivariana

A encarnação dessa doutrina é a Milícia Bolivariana, criada oficialmente em 2008 a partir da expansão das forças de reserva militar nos anos anteriores.
A Milícia incorpora a população civil em tarefas de mobilização revolucionária e defesa nacional, valendo-se de um princípio contido na Constituição de 1999 sobre a "corresponsabilidade" de civis e militares pela defesa nacional.
De 1,6 milhão de membros em 2018, segundo números oficiais, passou a 5,5 milhões em 2024.
Em agosto de 2025, o governo anunciou que a meta é mobilizar um total de 8,5 milhões de cidadãos, embora o número de tropas prontas para combate fique provavelmente nas dezenas de milhares.
Mas o objetivo desta força não é duplicar o poder convencional das Forças Armadas, e sim oferecer capilaridade ao sistema de defesa territorial, aproveitando o conhecimento geográfico detalhado das comunidades para reforçar a resistência a nível hiperlocal.
Na eventualidade de um conflito, é provável que uma grande parte dos milicianos e milicianas, em vez de pegar em armas, se dedicasse ao que o governo chama de "inteligência popular", buscando evitar, por exemplo, uma explosão de protestos sociais na periferia.
Isto não elimina o papel da defesa convencional militar na estratégia de defesa da Venezuela.
Porém, contando com um contingente de apenas cerca de 150 mil tropas – cerca de 80 mil no Exército e o resto distribuído entre Marinha, Força Aérea e Guarda Civil –, a FANB tem plena consciência do seu poder de fogo frente aos quase 1 milhão que servem os EUA.
Grande parte da renovação e modernização dos equipamentos empreendida por Chávez nos anos 2006 a 2008, aproveitando os altos preços do petróleo, se dedicou à compra de armamentos defensivos, como armamentos antitanques e misseis antiaéreos portáteis, de parceiros como Rússia, China e Irã.
Mas a crise econômica recente impediu novas rodadas de modernização. O relatório Military Balance, do International Institute for Strategic Studies, afirma que "as dificuldades económicas contínuas e as sanções limitaram a capacidade da Venezuela de adquirir novas tecnologias de defesa" e destaca que "o seu relacionamento no campo da defesa com Irã" se aprofundou sob Maduro.
Incertezas
Enquanto o sinal de alerta preocupa as autoridades em Caracas, a grande interrogação são os próximos passos dos EUA.
Sem tropas regulares cruzando fronteiras, o envolvimento da CIA adiciona flexibilidade, imprevisibilidade e opacidade à campanha americana.
Do lado venezuelano, a questão é como reagiriam os cidadãos e as forças do Estado diante de cenários como uma agressão ou até operação de bandeira falsa ou derrubada de Maduro?
Mesmo partindo do princípio de que a elite do regime, que inclui Maduro, o ministro do Interior, Diosdado Cabello, e o ministro da Defesa, General Padrino López, permaneceria a FANB unitária?
Poderia uma estratégia de "guerra popular" conter possíveis pressões, dentro da sociedade venezuelana, por uma mudança de regime?
O governo de Maduro conseguiu sobreviver ao primeiro mandato Trump, quando foi alvo de sanções draconianas ao setor petroleiro e de uma crise econômica com um dos maiores índices de hiperinflação do mundo.
Em seu segundo mandato, Trump tem demonstrado que está mais determinado a derrubar seu rival venezuelano, e a inclusão da CIA na estratégia pode indicar que agora terá mais ferramentas, e mais flexíveis, para alcançar esse objetivo.
Pablo Uchoa é especialista em Venezuela e doutorando no UCL Institute of the Americas em Londres. Jornalista, ex-correspondente em Washington e autor do livro "Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez", escreve regularmente para veículos internacionais, como a BBC, Janes Intelligence Review, The Conversation e NACLA Report on the Americas." — mas não deixa claro o que seria essa fase.
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