SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 26 de outubro de 2025

Ser Arte Vida por Egidio Guerra.

 


A Arte Como Instrumento de Compreensão: Mapeando o Humano e o Mundo 

Antes de desconstruir, a arte primeiro tenta compreender. Ela é um modo singular de conhecimento. 

  • Harold Bloom (Shakespeare: A Invenção do Humano): Bloom argumenta que Shakespeare não apenas retratou a natureza humana, mas literalmente a inventou. Através da interioridade profunda de personagens como Hamlet, Iago ou Cleópatra, Shakespeare deu ao mundo a "consciência da auto-alteração" – a capacidade de nos observarmos e mudarmos através do diálogo interno. A arte, aqui, é o medium supremo para compreender a complexidade psicológica humana, criando os arquétipos que ainda usamos para nos entender. 


  • Mikhail Bakhtin (Problemas da Obra de Dostoiévski): Bakhtin complementa Bloom com o conceito do "romance polifônico". Em Dostoiévski, múltiplas vozes conscientes (os personagens) coexistem em pé de igualdade com a voz do autor, sem uma verdade única que as domine. A arte compreende a realidade não como um monólogo, mas como um diálogo de consciências independentes e conflitantes. Compreender o mundo, portanto, é escutar sua polifonia fundamental. 


  • Martin Puchner (Cultura): Puchner oferece uma lente macro. A cultura, impulsionada pela arte e pela narrativa, é uma "caixa de ferramentas" que os grupos humanos usam para compreender e organizar seu mundo. Da epopeia de Gilgamesh ao Manifesto Comunista, as histórias que contamos são tecnologias para dar sentido à existência coletiva, criando comunidades imaginadas e compreendendo nosso lugar nelas. 




A Arte Como Máquina de Desconstrução: Desmontando as Estruturas Estabelecidas 

Uma vez compreendidas as estruturas (do eu, da sociedade, da representação), a arte vira-se para desmontá-las. 

  • Pierre Bourdieu (Manet: Uma Revolução Simbólica): Bourdieu analisa a pintura de Manet não como uma mera evolução estética, mas como uma revolução simbólica. Manet desconstruiu o "campo artístico" do seu tempo, um espaço de regras invisíveis, hierarquias e crenças (o illusio). Ao desafiar a técnica, a temática e a composição académica, ele não pintou apenas quadros novos; criou um novo modo de ver, demolindo as certezas do mundo artístico e, por extensão, da sociedade que nele se refletia. 


  • Georges Didi-Huberman (Semelhança Informe): Didi-Huberman ataca a noção clássica de "semelhança" na arte. A "semelhança informe" não é uma mímica perfeita do mundo, mas uma força que corrói as formas estabelecidas. É o que é visível, mas não categorizável; o que assemelha, mas perturba. A arte, ao operar com o "informe", desconstroi nossa percepção organizada e racional da realidade, liberando potências de sentido ambíguas e inquietantes. 


  • Gilles Deleuze (Sobre a Pintura): Deleuze leva a desconstrução para o plano sensorial e ontológico. A pintura, para ele, não é sobre representar um objeto, mas sobre criar "blocos de sensações". Ela luta contra o "cliché" ótico – as imagens pré-fabricadas que vemos o tempo todo. A grande pintura (como a de Bacon) desmonta a figuração narrativa para liberar forças puras: o grito, o espasmo, a carnalidade. É uma desconstrução do olhar habituado para fazer-nos sentir o invisível. 


 A Arte Como Motor de Transformação: Forjando Novos Possíveis 

Compreender e desconstruir são passos para a transformação final. A arte não é um espelho, mas um martelo para forjar novas realidades. 

  • Anna Kornbluh (Ficções Reais): Kornbluh defende que as formas estéticas (o romance, a sonata, a estrutura de um filme) são máquinas abstratas que modelam a realidade social e psíquica. A arte não reflete o capitalismo; ela formaliza relações capitalistas (e pode formalizar outras). Ao engajar-nos com uma forma artística, nós internalizamos sua lógica. Portanto, a arte transforma ao oferecer novas formas de pensar e ser, novas estruturas para a subjetividade e a coletividade que podem desafiar a ordem vigente. 


  • Deleuze (novamente): A transformação em Deleuze é a "Criação" com 'C' maiúsculo. O objetivo da arte é criar novos afetos e perceptos – compostos de sensação que existem por si só e podem ser experimentados por qualquer um. Ao fazer isso, a arte não representa o mundo, mas acrescenta-lhe novos territórios existenciais. Ela transforma nossa capacidade de afetar e ser afetado, alterando para sempre o nosso "ser" no mundo. 

  • Bakhtin (novamente): A transformação bakhtiniana ocorre no diálogo. A consciência só se forma na interação com outra consciência. A arte polifónica, ao nos colocar em contato com vozes radicalmente outras, nos transforma pelo conflito e pela interação dialógica. Terminamos uma obra de Dostoiévski diferentes porque fomos forçados a confrontar verdades que não eram as nossas. 

Síntese Final: O Ciclo da Arte 

Em conjunto, esses pensamentos formam um ciclo poderoso: 

  1. A arte compreende ao inventar e mapear a complexidade do humano (Bloom), captar sua natureza dialógica (Bakhtin) e fornecer as ferramentas narrativas da cultura (Puchner). 

  1. A arte desconstrói ao realizar revoluções simbólicas que demolir hierarquias (Bourdieu), ao corroer as formas visíveis com o "informe" (Didi-Huberman) e ao lutar contra os clichés sensoriais que dominam nossa percepção (Deleuze). 

  1. A arte transforma ao forjar novas formas de subjetividade e organização social (Kornbluh), ao criar novos afetos e possibilidades de existência (Deleuze) e ao nos reconfigurar através do diálogo com o Outro (Bakhtin). 

A arte, portanto, não é um ornamento da vida humana. Ela é um campo de batalha ontológico, um laboratório onde o "ser" é constantemente compreendido em sua profundidade, desmontado em suas certezas e, finalmente, reinventado e transformado, expandindo os limites do mundo que somos capazes de habitar. 



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