Eu, Egidio Guerra, que morei sozinho em várias cidades, que cuido dos meus pais há mais de vinte anos, declaro: cada projeto social foi uma trincheira, uma luta de construção contra todos os tipos de perseguição. Dediquei minha vida à dor dos outros, porque a empatia não é um gesto, é o ritmo do meu sangue. Não só no amor, mas na ação: busco ajudar a vida de todos e caminho com suas dores como se fossem minhas. Nunca deixei de lutar com os pobres nas periferias, nos campos, nas assembleias estudantis e socias, sem receber nada por isso.
E, no entanto, nem por isso deixei de estudar. Inundei-me de cursos universitários, li milhares de livros, devorei filmes do mundo inteiro. Trabalhei em vários setores e canalizei meu salário para sustentar sonhos alheios. Acompanhei meu filho, década após década, com uma presença que tentou ser absoluta. Lutei contra a corrupção há décadas, muitas vezes sozinho, um Davi sem estilingue, sofrendo ameaças de toda ordem e tendo portas fechadas que, pelo meu currículo, eu tinha o direito de cruzar.
Não deixei de amar com a pureza exigente que o amor verdadeiro pede. Não deixei de orar, falando diretamente com Deus, acreditando nele mais do que em mim. Escrevi mais de dois mil artigos, cinco livros, roteiros, músicas. Criei o podcast Missões Educadoras, estou desenvolvendo um game para transformar vidas. Tenho amigos de mais de quarenta anos, testemunhas dessa jornada que atravessou escolas, universidades, empresas, ONGs, arte, cooperação internacional. Viajei o Brasil e o mundo, impulsionado por conquistas e prêmios, calcei sapatos até a sola furar de tanto caminhar pedindo apoio.
Eduquei, dei aulas, palestrei para crianças e jovens das escolas públicas, das ONGs e das universidades do Brasil e do mundo. E o melhor de tudo: não me transformei nos monstros que combatemos, nem naqueles que nos decepcionaram, enganaram e roubaram. Isso é pouco ?
Mas me falta muita coisa. Como meu filho aponta.
E sua voz entra em mim, um bisturi de amor:
“Caminhar dando a volta na rua, na lagoa ou no parque. Tomar o remédio sempre no mesmo horário, às 21h. Pegar um livro – coisa que não faz como antes – e ler até dar sono. Ir fazendo de pouco em pouco pra tirar os vícios da tela antes de dormir. Com isso, buscar acordar mais cedo. Voltar à psicóloga. Ir mais à praia. Participar de um grupo para socializar sem ter que trabalhar: um grupo de leitura, de estudos, Tai Chi Chuan... inventa. Continuar a ir ao cinema.”
E ele crava, com a dor que só um filho pode ter: “Tu é maior de idade, não tem deficiência física nem intelectual. Tem casa, carro, trabalho, dinheiro. E é extremamente inteligente. Então é plenamente capaz. A questão é só levar a sério. E quando tu não faz, me faz de idiota, e isso me dói mais.”
Sinto o peso dessa verdade. “As vezes tenho pesadelo contigo precisando de apoio. Isso é insustentável. E a vida é múltipla e infinita. Podemos criar pequenas revoluções em vários cantos. Foi tu que me ensinou isso. Então não vem dizer que tá cansado da vida e que já sabe tudo. É falso.”
Ele não traz as respostas, mas mostra onde não devo mais ir. Traz o “salário mínimo” de ações. “Tu dorme mal. As telas enlouquecem. Mudar isso é um passo básico. Vai fazer o check-up que tanto fala que os jovens vão fazer no game.”
E então, ecoando no meu cansaço, ressoa o meu próprio manifesto, a hora de parar que eu mesmo anunciei:
Chegou a hora de parar!
Depois de vários anos lutando nas pastorais, grêmios, UNE, ONGs, Banco Mundial, Governo, ONU... Chegou a hora de parar. Encontrei uma parte de mim em cada sonho realizado, em cada desafio. Porém, o preço pago pela vida pessoal é altíssimo. As instituições transformam diálogos em troca de mercadorias. Depois de lutar por ser e por seres, cheguei à beira do risco de me transformar em mercadoria.
Mas como sempre disse: daqui para frente é tudo bônus. Posso morrer a qualquer momento, e morrerei feliz. Realizei quase tudo. Esses sonhos nunca couberam nas instituições. Fazer política nos partidos é pouco; achar que a Universidade representa o saber, menos ainda; que as igrejas têm espiritualidade... há tempos é só dízimo.
É hora de parar entre o vermelho e a sensibilidade da chuva.
E meu filho insiste: “Graças a Deus existe a entidade tempo. Pq obviamente tu tá melhor que antes. Mas foi simplesmente pelo tempo.
Ele tem razão. A razão dos bastidores castra e não ilumina mais. Por isso, o parar é sem recomeço. Quero que os lugares sangrem, mas não se pode sangrar sem buscar a cura. Muitos se escondem de si mesmos, nos vazios da cachaça, sexo, dinheiro ou dos poderes. A sensibilidade da beleza que desperta nosso olhar é silenciada.
É hora de parar entre o azul e o terror do cotidiano.
O que eu quero mais? Mais uma luta? Mais uma denúncia? Meu filho pede o simples, o básico: um passeio, um horário, um livro. A vida que eu disse ser múltipla e infinita. Ele me devolve minhas próprias palavras: “Podemos criar pequenas revoluções em vários cantos.”
Entre o branco e a vontade de morrer lutando, ele me oferece a praia.
Olho para meu filho e vejo o que há de mais real. Enquanto o mundo dança uma música sem ritmo, entre o preto e o idiota que vive sem pensar, ele me diz: “Se toca. Literalmente. Toca nas emoções. Se percebe.”
E então, da síncope do cansaço, uma nova pulsão. Os pássaros voltam a voar. Não preciso mais dos jornais. Posso andar de bicicleta e não comer carne; posso amar sem sexo e fazer sexo sem amor; posso lutar contra a corrupção da minha própria alma, independente dos falsos juízes.
Uma barbárie que, ao mesmo tempo em que nega, afirma uma paz violenta em cada ser.
Não posso parar! O balé de pássaros e pessoas, a música, os ecos da natureza despertam o olhar das crianças. Cartazes de dores que não voltam mais. Nascer de novo, de novo, de novo.
Entre o verde e as certezas tecnológicas, a pergunta final: quem somos nós?
Que mesmo querendo, não podemos parar? Que mesmo sofrendo, não deixamos de amar? Que potência é esta que carregamos?
Assim como a natureza, essas dores, no silêncio, emergem como furacões. Destruindo e criando novas paisagens. Tecendo novas realidades, cores, poesias.
A luz não deixa que eu pare. E a voz do meu filho é agora parte dessa luz. Ele não é o fardo, é o lembrete. A revolução começa no remédio às 21h, no livro na mão, no caminhar sem destino na lagoa. É o “salário mínimo” do autocuidado que financia a grande revolução do espírito.
A vida é múltipla e infinita. E eu, Egidio Guerra, estou cansado. Mas pulsa em mim um entusiasmo renovado, não mais apenas pela multidão, mas por essa pequena, imensa revolução de voltar a caminhar comigo mesmo.
Você, eu, nós... queremos caminhar juntos? Sozinho, realmente, não dá mais.
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