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sábado, 15 de novembro de 2025

A Mulher no Sótão: A Escritora e a Imaginação Literária do Século XIX por Egidio Guerra



A Mulher no Sótão: A Escritora e a Imaginação Literária do Século XIX" 

Autoras:  Sandra M. Gilbert e Susan Gubar 

Publicação Original: 1979 
Gênero: Crítica Literária Feminista 

Tese Central: Gilbert e Gubar argumentam que as escritoras do século XIX (como Jane Austen, Mary Shelley, as irmãs Brontë, George Eliot e Emily Dickinson) operavam sob uma tradição literária profundamente patriarcal, que elas chamam de "anxiety of authorship" (a ansiedade da autoria). Diferente da "anxiety of influence" (ansiedade da influência) de Harold Bloom, onde poetas homens lutam contra seus predecessores masculinos, as escritoras sentiam-se isoladas, sem uma linhagem literária feminina sólida e aterrorizadas pela acusação social de que escrever era um ato "imodesto" e não feminino. 

Metáfora Fundadora: A Mulher no Sótão 
A metáfora central do livro é extraída de Jane Eyre, de Charlotte Brontë: Bertha Mason, a esposa louca e enclausurada no sótão por Mr. Rochester. 

  • Bertha Mason como o "Duplo" (The Double): Gilbert e Gubar argumentam que Bertha não é apenas um personagem, mas uma representação simbólica da raiva, da sexualidade reprimida e da rebeldia da própria Jane Eyre – e, por extensão, de todas as escritoras vitorianas. A "mulher no sótão" é a personificação da raiva e da loucura que a sociedade patriarcal força na mulher que ousa transgredir. A escritora, para ser aceita, precisava aparentar ser angelical e passiva (como um "anjo do lar"), enquanto toda a sua fúria e criatividade transbordavam de forma codificada em sua escrita, muitas vezes através de personagens monstruosas, loucas ou rebeldes. 

Estrutura e Argumentos Principais: 

  1. A Maldição da Autoria: As autoras exploram como a figura de Deus-Pai e do poeta-pai (como Milton, em Paraíso Perdido) criou um cenário onde a criatividade era uma prerrogativa masculina. A mulher que ousava criar era vista como monstra, uma usurpadora. 

  1. Imagens da Mulher na Literatura Patriarcal: Elas analisam como a literatura masculina retratava a mulher como um anjo (puro, passivo, sacrificial) ou um monstro (perigoso, sexual, demoníaco). As escritoras do século XIX internalizaram essas imagens e lutaram contra elas. 

  1. Estratégias de Escrita Feminina: 

  1. Apropriação e Revisão: As escritoras se apropriavam de mitos e estruturas masculinas (como a história de Satanás, em Milton) e os reescreviam de uma perspectiva feminina. 

  1. Realismo Coberto e Sátira: Usavam o disfarce do realismo e da sátira social (como Jane Austen) para criticar o sistema sem parecerem muito radicais. 

  1. O Gotíco e o Sobrenatural: O gênero gótico permitia que explorassem, de forma metaforicamente aceitável, os horrores da dominação patriarcal, do confinamento e da rebeldia feminina (como em Frankenstein e O Morro dos Ventos Uivantes). 

  1. A Doença como Protesto: Muitas protagonistas adoeciam (física ou mentalmente) como uma forma última de protesto contra as limitações impostas a elas. 

  1. Análises de Obras Específicas: O livro dedica capítulos a análises profundas de obras como Jane EyreO Morro dos Ventos UivantesFrankenstein, e a poesia de Emily Dickinson, mostrando como cada uma lida com essas ansiedades e estratégias. 

 

O que os Críticos Escreveram Sobre "A Mulher no Sótão" 

A publicação de A Mulher no Sótão foi um evento seminal na crítica literária feminista e sua recepção foi, em geral, extremamente positiva, mas também gerou debates importantes. 

1. Impacto e Contribuições Fundamentais: 

  • Canonização do Feminismo: Críticos concordam que o livro foi fundamental para estabelecer um cânone literário feminino e para levar a sério a literatura escrita por mulheres do século XIX, que antes era muitas vezes menosprezada como "menor" ou sentimental. 

  • Ferramental Teórico: A obra forneceu um vocabulário e uma estrutura crítica (como a "ansiedade da autoria" e a figura do "duplo") que se tornaram ferramentas essenciais para gerações de estudiosos. 

  • Leituras Inovadoras: Suas leituras de obras como Jane Eyre e O Morro dos Ventos Uivantes tornaram-se clássicas. A interpretação de Bertha Mason como o duplo de Jane é, hoje, quase onipresente. 

2. Críticas e Debates Posteriores: 

  • Foco no Branco e de Classe Média: Críticas feministas negras e pós-coloniais, como bell hooks, apontaram que a análise de Gilbert e Gubar é centrada na experiência da mulher branca, de classe média e anglo-saxã. A figura da "mulher no sótão" ignora que mulheres racializadas já eram historicamente colocadas nesse lugar de "monstro" ou "outro", e que sua luta e expressão literária eram (e são) distintas. 

  • Generalização de uma "Experiência Universal Feminina": O livro foi acusado de, em sua tentativa de criar uma tradição, homogeneizar a experiência feminina, tratando-a como uma essência única, sem levar em conta as interseccionalidades de raça, classe e sexualidade. 

  • A "Vítima" versus a "Agente": Alguns críticos argumentaram que a tese, ao enfatizar a opressão patriarcal, pode inadvertidamente retratar as escritoras do século XIX mais como vítimas do que como agentes astutos e criativas que, apesar das limitações, foram geniais. 

 

As Mensagens sobre o Amor em "A Mulher no Sótão" 

O livro de Gilbert e Gubar não é sobre o amor romântico em si, mas suas teses revolucionam completamente a forma como lemos as representações do amor na literatura dessas autoras. 

1. O Amor Romântico como Armadilha Patriarcal: 
A crítica principal é que o casamento e o amor romântico, tal como idealizados no século XIX, eram instituições que serviam para confinar e silenciar as mulheres. O "felizes para sempre" com um marido era, na prática, a perda da identidade, da propriedade e da voz da mulher. O amor, nesse contexto, é uma ideologia que mascara a dominação. 

2. O Conflito entre Amor e Autonomia: 
As protagonistas das obras analisadas vivem um conflito central: o desejo de amar e ser amada versus o desejo de autopreservação, independência e expressão do eu. Jane Eyre é o exemplo máximo: ela se recusa a se tornar a amante de Rochester não por moralidade puritana, mas porque isso a reduziria a um objeto dependente, aniquilando sua integridade moral e autonomia. O amor só se torna possível para Jane quando ela consegue se relacionar com Rochester de igual para igual, após ter conquistado sua independência financeira e ele ter sido "humilhado" (cego e aleijado). 

3. A Raiva como Irmã Gêmea do Amor: 
Esta é uma das contribuições mais importantes. Gilbert e Gubar mostram que a raiva feminina – a fúria contra a opressão, o confinamento e a injustiça – não é um sentimento separado do amor, mas muitas vezes seu correlato direto. A paixão intensa de Catherine por Heathcliff em O Morro dos Ventos Uivantes é inseparável de sua raiva contra as convenções sociais que a impedem de se casar com ele. A loucura de Bertha Mason é a expressão brutal da raiva que Jane Eyre precisa reprimir para se manter como uma "dama" cristã. O amor, portanto, não é um sentimento puro e pacífico, mas um campo de batalha onde se travam guerras por poder, identidade e liberdade. 

4. A Rejeição do "Anjo do Lar": 
A figura do "anjo no lar" – a mulher abnegada, pura, assexuada e sempre amorosa – é desconstruída como uma fantasia patriarcal opressiva. As escritoras mostram que tentar se encaixar nesse modelo é uma sentença de morte para a alma. As personagens que mais se aproximam desse ideal são as que mais sofrem ou são as mais oprimidas. O "amor" que elas oferecem é, na verdade, uma anulação de si mesmas. 

Conclusão 

A Mulher no Sótão não traz uma "mensagem sobre o amor", mas uma denúncia de como o amor foi instrumentalizado para oprimir as mulheres. A obra ensina a ler nas entrelinhas da literatura do século XIX e a perceber que, por trás dos romances de amor, havia uma profunda crise de identidade feminina. O verdadeiro "amor" que as autoras e suas protagonistas buscam não é o romântico e possessivo, mas um que permita a coexistência de duas subjetividades completas e autônomas – uma ideia radical para a sua época e cuja luta ecoa até os dias de hoje. 

 

 

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