SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

A Roda da fortuna e a Lição que os Olhos Não Podem Esquecer por Egidio Guerra

 


Um garoto do Alphaville entra, pela primeira vez, na periferia. Na casa humilde de outra criança, ele faz perguntas inocentes, que ecoam como acusações contra um sistema desigual. 


"Onde está o seu quarto?" – "Não tem. Dormimos todos juntos." 
"Onde você estuda?" – "Nesse mesmo lugar. Ele não tem um lugar para estudar." 
"O que vocês comem? Onde estão os livros?" 

Pela primeira vez, essa criança privilegiada não apenas lê sobre a desigualdade; ela a aprende com os olhos, os ouvidos e a pele. A realidade impõe-se através dos sentidos. Ele continua a caminhar com o novo amigo: vê a escola pública e a compara com a sua; observa o local de brincadeiras e o contrasta com seus brinquedos. Lembra-se de que seu condomínio tem lago, jardim, parquinho e horta – ele convive com a natureza planejada e controlada. A outra criança convive com o esgoto a céu aberto e a ausência total de espaços verdes. Enquanto a segurança de seu mundo é terceirizada para uma empresa privada, a segurança do amigo é negociada, diariamente, com a sombra do crime organizado. 


Diante desse abismo, uma pergunta inevitável surge: como os políticos, tecnocratas corruptos e bilionários, cujas decisões perpetuam este cenário, não enxergam o que milhões testemunham todos os dias, a toda hora? A resposta é que essa não é uma cegueira óptica, mas uma anestesia voluntária da alma. 

Eles não sentem, não pensam, se auto enganam. Transformaram-se em monstros de indiferença, que negam a vida e a humanidade do outro. Venderam a sua alma não a uma figura mitológica, mas ao dinheiro – o que, no fim das contas, resulta na mesma perda de humanidade. 

Esta insensibilidade não é uma falha de percepção, mas uma falha de caráter ético, uma patologia moral que a literatura e a história já retrataram inúmeras vezes. 

  • Émile Zola, em seu célebre manifesto J'Accuse…!, não denunciou apenas um erro judicial, mas a covardia estrutural das elites que preferiam a injustiça ao incômodo de mudar o status quo. Os corruptos de hoje são os herdeiros dessa tradição: protegem o sistema que os beneficia, mesmo ao custo de vidas humanas. 

  • Shakespeare eternizou a ambição desmedida em personagens como Lady Macbeth, que suplicava: " Ensombre-me, noite espessa, e me cobre com a fumaça mais negra do inferno".



  • É o mesmo grito silencioso do corrupto que, para ocultar seus crimes, busca o manto da impunidade e da opacidade financeira. No entanto, como a personagem, ele é atormentado pelos fantasmas de suas ações.
     

  • Nas tragédias gregas, a Hubris – o orgulho excessivo que desafia os deuses e a ordem natural – era sempre punida. Figuras como Édipo, que resolveu o enigma da Esfinge mas foi cegado pela própria arrogância, são alertas atemporais. A hubris do bilionário que sonega impostos ou do político que desvia verbas da saúde é a mesma: a crença de que estão acima da lei e da moral. Sua queda, quando ocorre, é tão catastrófica e instrutiva quanto a de um herói trágico. 

E a queda acontece. A história recente é um catálogo de titãs que se julgaram intocáveis, mas que terminaram seus dias na miséria moral e atrás das grades. 


  • Bernie Madoff, arquiteto de um esquema de Pirâmide de US$ 65 bilhões, viveu como um magnate enquanto arruinava aposentadorias e fundos de caridade. Sua sentença de 150 anos de prisão é um epitáfio adequado para a ganância pura. 

  • Enron, outrora a "empresa mais inovadora" da América, revelou-se um castelo de cartas de fraudes contábeis. Seus executivos, celebrados como gênios, foram para a cadeia, e seu nome tornou-se sinônimo de falência ética. 




  • No Brasil, a lista é longa e dolorosa. Eike Batista, que simbolizou o "milagre econômico", viu seu império de ilusões desmoronar, levando-o à condenação por corrupção. Políticos como Sérgio Cabral e Eduardo Cunha, que comandaram o país de seus gabinetes com poder absoluto, experimentaram a cela fria do sistema prisional que ajudaram a criar. Eles, que negavam dignidade aos mais pobres, tiveram a sua própria reduzida a um número e uma uniforme. 




A ganância, a maldade e a brutalidade de negar uma vida digna ao outro são, no fundo, uma forma profunda de ignorância. É a ignorância de acreditar que a riqueza acumulada sobre o sofrimento alheio pode trazer paz. É a ignorância de não perceber que uma sociedade doente, mais cedo ou mais tarde, contagia todos os seus membros, inclusive os mais abastados. 

Por isso, o antigo ditado grego ressoa com uma verdade imutável: "Só pode se declarar vitorioso no final da vida." 

Um bilionário em seu iate, um político em seu palanque, podem se sentir invencíveis hoje. Mas a vitória verdadeira não é um momento de auge financeiro ou político. É o saldo final de uma existência. Será lembrado como um arquiteto do bem comum ou como um saqueador de oportunidades? Terá, no fim, a serenidade de quem semeou o bem ou o desespero silencioso de quem consumiu o futuro dos outros? 

A história, a justiça e a memória coletiva são lentas, mas implacáveis. Elas aguardam nos bastidores. E, como nos ensinam Zola, Shakespeare e as tragédias gregas, o equilíbrio moral do universo, por mais tensionado que esteja, sempre se restaura. A questão não é se a roda da fortuna girará, mas quando – e em que direção eles estarão olhando quando ela completar seu ciclo. 




 

 

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