
- Giulia Granchi e Leandro Prazeres
- Enviados especiais a Nova York da BBC News Brasil
O encontro entre o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, nesta quarta-feira (24/9), em Nova York, aconteceu após um longo período de negociações entre os dois governos.
Lula e Zelensky se encontraram por volta das 11:40 (horário de Brasília), logo após a participação do brasileiro em uma reunião em defesa da democracia, na sede da ONU. A reunião bilateral é um ponto central de aproximação em uma relação que, nos últimos anos, foi marcada por uma troca mútua de farpas sobre os destinos da guerra na Ucrânia.
O encontro aconteceu durante a passagem de ambos pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e foi antecedido de uma série de idas e vindas ao longo de quase um ano.
A reunião foi feita a pedido dos ucranianos, mas um interlocutor do presidente Lula com quem a BBC News Brasil conversou em caráter reservado afirmou que o governo brasileiro demonstrava disposição para que o encontro se realizasse.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que as mudanças geopolíticas geradas pela atual política internacional do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tiveram relação com a mudança de postura de Zelensky e Lula e possibilitaram o encontro entre os dois líderes.
Sob Trump, eles afirmam, os Estados Unidos mudaram sua política de apoio incondicional à Ucrânia na guerra contra a Rússia, promoveram uma reaproximação com o líder russo, Vladimir Putin, e levaram Zelensky a procurar mais apoios junto à comunidade internacional para enfrentar o inimigo no campo diplomático.
Desencontros e recomeço
Parte da tensão na relação entre Lula e Zelensky tem origem no fato de que Lula, historicamente, cultivou uma proximidade estratégica com Vladimir Putin.
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Os dois já estiveram juntos diversas vezes e comandam dois dos países fundadores do Brics, grupo que hoje agrega 11 economias emergentes, entre elas China, Índia e África do Sul.
Apesar de Lula ter condenado os ataques da Rússia à Ucrânia, ele foi constantemente cobrado por não romper relações com a liderança russa e por fazer declarações críticas ao apoio de países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos à Ucrânia após o início da guerra.
Em 2022, por exemplo, durante a pré-campanha eleitoral daquele ano, Lula deu uma entrevista à revista americana Time em que disse que Zelensky "quis" a guerra e que ele se comportava como "o rei da cocada".
"Ele quis a guerra. Se ele [não] quisesse a guerra, ele teria negociado um pouco mais [...] Mas há um estímulo [ao confronto]! Você fica estimulando o cara [Zelensky] e ele fica se achando o máximo. Ele fica se achando o rei da cocada", disse Lula.
Em abril de 2023, já como presidente, Lula voltou a criticar o que chamou de "incentivo" à guerra na Ucrânia supostamente feito por países europeus e pelos Estados Unidos. Abertamente, ele defendia que a solução do conflito não se daria pela via armada, mas diplomática, por entender que seria militarmente impossível derrotar a Rússia.
Zelensky, por outro lado, rebateu as críticas de Lula.
"Acho que o presidente Lula é uma pessoa experiente, mas não entendo muito bem uma coisa: será que ele acredita que sua sociedade [o Brasil] não entende completamente o que está acontecendo e que ele conta com isso?", afirmou.
Em maio de 2023, Lula e Zelensky quase se encontraram durante a cúpula de líderes do G7 (grupo que reúne Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha, França, Itália e Japão), mas a reunião não aconteceu.
Segundo o governo brasileiro, Lula havia aberto espaço em sua agenda, mas Zelensky não compareceu. A situação gerou embaraço junto à delegação brasileira.
Durante uma das sessões do G7, o presidente brasileiro discursou diante de Zelensky.
"Condenamos a violação da integridade territorial da Ucrânia. Ao mesmo tempo, a cada dia em que os combates prosseguem, aumentam o sofrimento humano, a perda de vidas e a destruição de lares. Tenho repetido à exaustão que é preciso falar de paz."
Havia expectativa de um encontro bilateral, que não ocorreu. Questionado em coletiva se estava desapontado, Zelensky devolveu: "Eu me encontrei com quase todos os líderes. Mas todo mundo tem seu próprio calendário, motivo pelo qual acho que não pudemos nos encontrar com o presidente brasileiro. Talvez a decepção seja dele".
Em setembro de 2023, durante a Assembleia Geral da ONU daquele ano, Lula e Zelensky finalmente se encontraram pela primeira vez, mas a reunião foi considerada fria e protocolar por assessores próximos do brasileiro.
Na ocasião, o então chanceler ucraniano Dmytro Kuleba disse que a reunião serviu para "quebrar o gelo".
Pouco depois, ele corrigiu a própria declaração. "Não que houvesse gelo entre nossos países, mas a conversa foi muito calorosa e honesta. Acho que agora os dois presidentes entendem melhor o lado de cada um."
Nos meses que se seguiram, porém, as farpas entre os dois continuaram. O Brasil formou um grupo juntamente com a China e outros países para tentar viabilizar uma saída diplomática para a guerra, mas, inicialmente, a Ucrânia não aderiu à proposta, que era avalizada por Brasil e China.
No ano passado, Zelensky criticou a postura de Lula.
"A China é um país democrático? Não. E o que dizer sobre o Irã? É um país democrático? Não. E o que dizer da Coreia do Norte? Eles não são países democráticos. Então, o que o Brasil, um grande país democrático, faz nessa companhia? Eu não consigo entender esse círculo de países", afirmou o presidente ucraniano em entrevista ao apresentador brasileiro Luciano Huck.
Em maio deste ano, Lula foi novamente alvo de críticas de analistas internacionais por sua viagem a Moscou durante as comemorações dos 80 anos da vitória soviética na Segunda Guerra Mundial.
O evento, marcado por uma enorme parada militar, é visto como uma demonstração de força do presidente Putin e a ida de Lula foi interpretada como um gesto de apoio político ao líder russo.

Mudança de ventos
Mas apesar das queixas da Ucrânia sobre a proximidade do Brasil com a Rússia, os ventos da relação entre Lula e Zelensky já haviam começado a mudar alguns meses antes, a partir da vitória de Donald Trump nas eleições de 2024.
O republicano se elegeu prometendo acabar com a guerra na Ucrânia rapidamente e propôs uma abordagem diferente da usada pelo antecessor, o democrata Joe Biden.
Enquanto o governo anterior forneceu ajuda financeira e militar a Zelensky, Trump passou a cobrar acesso americano a recursos minerais do país como forma de pagamento pela ajuda e deu início a uma reaproximação diplomática com Putin.
Os movimentos de Trump não agradaram Zelensky e o ápice da tensão foi visto ao vivo durante a transmissão de uma reunião bilateral entre ele e o líder americano, na Casa Branca, em Washington, em fevereiro.
Trump acusou Zelensky de estar "jogando com a Terceira Guerra Mundial" e de "não ser muito grato" — em referência ao apoio dos EUA à Ucrânia na guerra contra a Rússia.
O presidente ucraniano tentou interromper Trump em alguns momentos, mas o americano continuou fazendo acusações.
Após os momentos de tensão, uma entrevista coletiva conjunta que estava prevista foi cancelada e Zelensky deixou a Casa Branca.
Nesta semana, no entanto, Trump pareceu indicar uma mudança na sua disposição de negociar com Putin e na sua relação com Zelensky. Em uma reunião bilateral com presidente ucraniano, em Nova York, Trump adotou um tom mais conciliador com Zelensky e disse respeitar a luta ucraniana.
Em suas redes sociais, Trump também fez um aparente recuo ao dizer que seria possível a Ucrânia recuperar os territórios perdidos para a Rússia desde o início da guerra.
"Eu acho que a Ucrânia, com o suporte da União Europeia, está em uma posição para ganhar de volta todos os territórios
"Com o tempo, a paciência e o apoio financeiro da Europa e, em particular, da Otan, as fronteiras originais de onde esta guerra começou, são uma opção", afirmou Trump.
As mudanças de direção na política internacional de Trump, porém, fizeram com que Zelensky passasse a tentar fortalecer seus laços com a União Europeia e com líderes de outros países.
E foi nesse contexto que, nos bastidores, o país começou a procurar o governo brasileiro para distensionar as relações e buscar um encontro com o presidente Lula.
Uma fonte ouvida pela BBC News Brasil em caráter reservado conta que, durante viagem de volta de Lula da China, em maio, emissários de um país europeu repassaram aos brasileiros que Zelensky gostaria de se encontrar com Lula.
Uma fonte do governo brasileiro ouvida em caráter reservado disse à BBC News Brasil na semana passada que a Ucrânia formalizou um novo pedido de reunião com Lula há algumas semanas e que o palco do encontro poderia ser a passagem de ambos pela Assembleia Geral da ONU.
O fator Trump
Para o cientista político David Magalhães, professor da PUC-SP, esse histórico de mal-entendidos ajuda a entender a cautela de ambos os lados até agora.
"Quando Lula foi eleito havia a percepção de que ele teria uma inclinação para a Rússia. De fato, a postura da política externa brasileira oscilou: de um lado, o Brasil cortejava Moscou; de outro, em algumas votações na Assembleia Geral da ONU, se posicionou contra a Rússia."
Os analistas ouvidos pela BBC News Brasil coincidem ao dizer que a chegada de Trump à Casa Branca mudou a "equação" geopolítica e obrigou Zelensky a fazer um reposicionamento.
Ao imprimir uma postura mais isolacionista e crítica a mecanismos multilaterais, o novo presidente americano reforçou a importância de Lula como uma voz do Sul Global capaz de transitar entre diferentes polos de poder.
Magalhães ressalta que, nesse tabuleiro, Zelensky vê no Brasil uma potência média que pode reforçar sua rede de apoio internacional.
"Trata-se de um momento muito delicado para a Ucrânia, diante da maior ofensiva russa desde o início da guerra. Nesse cenário, não faz sentido para Kiev abrir mão de diálogo com um ator que, mesmo não sendo decisivo militarmente, tem peso político e simbólico."
De acordo com Haroldo Ramanzini, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), o interesse de Zelensky em se reunir com Lula se explica pelo peso que o Brasil tem no cenário internacional e pela posição de autonomia defendida pelo presidente brasileiro.
"O Brasil tem uma política externa universalista e de participação ativa nas principais instâncias de governança global. Ao mesmo tempo, Lula é uma das principais lideranças do Sul Global. No caso da guerra na Ucrânia, o Brasil, junto com a China, apresentou no ano passado uma proposta de seis pontos para a desescalada do conflito. Isso ajuda a entender por que Zelensky deseja uma nova reunião", afirma.
Para o Brasil, segundo o professor, um encontro desse tipo representaria um reconhecimento internacional.
"Se o Brasil não tivesse peso diplomático e político, a demanda por reunião e apoio não ocorreria. Parte da razão é a posição autônoma de Lula, que mantém diálogo inclusive com o presidente Putin", diz Ramanzini.
Na avaliação de Magalhães, a reunião também pode reposicionar o Brasil no debate sobre paz e segurança. "Mesmo que sua capacidade de influenciar o desfecho final seja limitada, o Brasil tem tradição diplomática reconhecida. Essa credibilidade, construída ao longo de décadas, confere peso adicional à sua presença nas discussões multilaterais."

Por que aproximação com Lula é especialmente importante para Zelensky agora
Na avaliação do cientista político Guilherme Casarões, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), a pressão sobre Zelensky ajuda a explicar a busca por Lula.
"É um momento muito difícil da guerra, que já se arrasta por mais de três anos e pode deixar uma abertura para ganhos territoriais efetivos da Rússia. É justamente esse cenário que ele quer evitar."
"Em contexto em que Trump se mostra ambíguo em relação ao conflito e mantém bom relacionamento com Vladimir Putin, falar com o Brasil é uma estratégia que faz sentido. O governo brasileiro tem entrada junto à China e à Rússia, sobretudo via Brics, além de exercer uma liderança relevante no Sul Global. Por isso, a Ucrânia segue reconhecendo o Brasil como um interlocutor importante e vê nessa reunião uma chance de mostrar que não está isolada."
Casarões também avalia que as críticas a Lula por adotar um tom mais duro contra Israel do que contra a Rússia precisam ser contextualizadas:
"Embora essa crítica seja válida, é importante compreender que se tratam de relações de natureza estratégica muito diferentes. O Brasil é muito mais próximo da Rússia do que de Israel, e a Rússia é mais importante para a política externa brasileira."
Já o conflito israelense-palestino, segundo o cientista político, "tem um peso histórico na projeção internacional do Brasil e na sua relação com o Sul Global, enquanto a questão ucraniana é mais recente. Isso ajuda a explicar diferenças de postura, ainda que se possa acusar o Brasil de certa hipocrisia".
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