Havia uma pilha de livros recém-chegada ao sebo.
Dava pra notar que não vinham por acaso.
Alguns tinham capas gastas, mas seguras.
Outros pareciam ter sido lidos há pouco — com a pressa quase reverente de quem devora e não só lê.
Não era uma doação qualquer.
Era uma despedida.
Cada livro ali parecia conter mais do que histórias impressas: traziam rastros de um leitor fiel, alguém que sublinhava palavras como quem grifa pensamentos próprios. Anotações nas bordas. Datas rabiscadas. Pequenas manias.
Eles chegaram num sábado, empilhados com certo cuidado — nem tanto por zelo, mas por uma espécie de respeito.
A caixa veio firme, bem embalada.
E dentro dela… livros. Muitos.
Livros que não vinham em silêncio.
Dava para ouvir um burburinho sutil quando abri:
“Ficamos com ele por anos”, disse um volume robusto de capa bordô, “fui lido duas vezes inteiras, e depois uma terceira só até a metade — ele não queria terminar. Acho que estava adiando um fim.”
"Eu fui lido no ônibus", murmurou um pocket surrado. "Toda manhã. Ele ria sozinho comigo."
“Eu fui chorado”, disse um outro, marcado por dedos e pingos pequenos, “mas não vou contar qual capítulo foi. Isso é um segredo nosso.”
Aos poucos, o mistério foi se desfazendo.
Entre um sussurro e outro, a história começou a emergir. Um dos livros soltou, meio nostálgico:
"Ele se apaixonou. Daquelas paixões que atravessam estados e reviram estantes."
Depois, o tom mudou.
“Foi depois de uma certa quarta-feira”, comentou um livro de crônicas, “que ele começou a ficar… distraído.”
“Sim, sim! Passava o tempo todo no celular!”, exclamou um romance contemporâneo, com uma orelha dobrada na página 33. “E era sempre sorrindo, com aquele olhar bobo de quem não está mais aqui.”
“Ele lia as mensagens como lia a gente”, disse um poema, com certa mágoa. “Devagar, saboreando. Foi aí que percebi... ele se apaixonou.”
“Ah, o amor...” suspirou um clássico francês. “Será que ela gosta de livros? Eu gostaria de conhecê-la. Imagino que tenha olhos gentis.”
“Bah”, bufou um ensaio político, todo anotado à lápis. “Acho isso tudo um disparate. Trocar ideias impressas por emojis! Onde já se viu?”
“Ela mora longe”, cochichou um livro de viagens, como quem sabe o peso disso.
“E ele... bom, ele começou por nós.”
“Disse que precisava ficar mais leve.”
“Disse que o amor exige espaço.”
“Talvez tenha começado por nós por saber que seríamos os mais difíceis de deixar ir.”
Um silêncio se fez por um instante.
Como se cada um deles revivesse o momento em que foi embalado.
“Eu preferia ter ficado com ele”, disse um pequeno livro de bolso. “Mesmo que fosse só para enfeitar a estante.”
“Mas, veja bem”, ponderou um volume filosófico, “talvez isso também seja amor: abrir mão, confiar, partir.”
Era visível que gostava deles — muito.
Alguns estavam com ele havia tanto tempo que as páginas tinham assumido o cheiro da casa.
Outros tinham sido comprados há poucos meses, mas já carregavam o carinho dos escolhidos com urgência.
Ele não os vendeu com pressa.
Não os largou como quem se livra.
Ele os confiou.
E os livros sabiam disso.
"Ele hesitou", confessou um romance russo, todo sublinhado em lápis.
"Colocou a mão sobre mim umas três vezes antes de nos embalar."
“Falou em ficar só com cinco... depois com dois… acabou deixando todos. Acho que achava injusto escolher.”
Não foi falta de amor. Foi por amor.
E agora estão aqui, à espera de novas mãos, de novos olhos, de novos mundos.
Livros sabem recomeçar.
Hoje, ficaram conversando entre si.
Contando as histórias do homem que os leu e os amou.
E esperarão, quietos, por alguém que os ame de novo.
É assim que seguem vivendo.
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