SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 12 de outubro de 2025

A Criança que Deu Certo por Egidio Guerra.




Na mesa ao lado, copos batiam, vozes embriagadas vomitavam arrogância sobre as crianças que serviam. Do outro lado, uma criança de cinco anos, com olhos mais velhos que a noite, vendia doces. Quando me inclinei para ouvi-la, ela disse: "Não estou escutando o que você fala". João Victor, meu filho, perguntou se poderia falar com sua mãe. A resposta ecoou como um provérbio ancestral: "Eu mesmo resolvo". Naquele instante, vi não uma vítima, mas uma pequena força autônoma. João comprou doces e, com um gesto que unia justiça e doçura, pediu que ela escolhesse um para si. Enquanto isso, na nossa mesa, celebrávamos com irmãos de causas e projetos sociais - um contraste gritante com a mesa ao lado, onde adultos celebravam o vazio, menosprezando as mesmas crianças que hoje receberiam presentes vazios no Dia das Crianças. 


João Victor, hoje com 28 anos, é a criança que deu certo. Lembro-me de nossa conversa na praia, quando ele adolescente vislumbrava os dois currículos da vida: o da escola, dos concursos, da estabilidade - e o currículo invisível que a vida, Deus e os irmãos de lutas nos oferecem diariamente. Escolhemos juntos este segundo, sem negar o primeiro, mas transcendendo-o. Como Rousseau pregou em "Emílio", compreendemos que a verdadeira educação não se faz nas salas de aula sozinho para passar no vestibular, mas na experiência direta com o mundo, no desenvolvimento natural da bondade inata da criança. 

Nossas ações sempre foram trilhas compartilhadas - avô, pai e filho. Desde as tarefas mais simples, como limpar o quintal enquanto conversávamos sobre futebol e plantas, até as mais complexas, como cuidar do meu pai no hospital durante semanas. Nessas horas, vivíamos o que Loris Malaguzzi descreveu em "As Cem Linguagens da Criança": a criança possui cem maneiras de pensar, de criar, de amar - e a escola e a sociedade lhe roubam noventa e nove. Nós protegemos essas linguagens todas. 


João Victor lembra outras crianças que deram certo - não pelo sucesso convencional, mas pela capacidade de manter viva a chama da humanidade. Greta Thunberg, que transformou a solidão do Asperger em um grito global por justiça climática. Malala Yousafzai, que levou um tiro na cabeça mas não na voz. As crianças indígenas brasileiras que defendem suas terras com sabedoria ancestral. Como escreveu Rubem Alves, "há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas" - nós escolhemos as asas. 


Enquanto celebramos essas histórias, os números nos lembram da urgência nossa de cada dia: 149 milhões de crianças menores de cinco anos sofrem de desnutrição crônica globalmente; no Brasil, 9 milhões vivem na pobreza extrema. Crianças imigrantes enfrentam fronteiras hostis, outras são recrutadas pelo crime organizado, muitas são tratadas como mercadoria descartável. 



João Victor deu certo não porque se tornou um homem bem-sucedido financeiramente - que também é - mas porque preservou a capacidade de ouvir o "eu mesmo resolvo" da criança de cinco anos e responder com compaixão ativa. Enquanto elites, políticos e tecnocratas corruptos discursam sobre educação, nós praticamos a pedagogia do cuidado mútuo, da louça lavada juntos, do hospital frequentado com amor, dos projetos sociais construídos comunidade por comunidade.

A criança que deu certo é aquela que, adulta, não esqueceu que toda criança carrega cem linguagens, cem possibilidades, cem futuros - e que nosso dever é proteger essa multiplicidade contra os que querem reduzir a vida a um único currículo, a uma única maneira de ser. João Victor é minha prova diária de que é possível educar para a liberdade, e que a verdadeira estabilidade não vem do concurso público, mas da coerência entre o que se prega na mesa de jantar e como se vive na mesa da vida. 





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