SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Tratado da Forma: Caos, Encontro e Emergência nos Domínios do Ser por Egidio Guerra.

 



Prefácio: A Ilusão da Forma Estável 

A forma, longe de ser um invólucro estático ou uma geometria pura, é um evento. É um momento de tensão, uma cristalização provisória no fluxo incessante das forças do real. Este tratado propõe uma arqueologia e uma cosmologia da forma, navegando pelas intuições de Georges Didi-Huberman, Gaston Bachelard, Marcel Granet e Peter Sloterdijk. O seu objetivo é descrever os processos dinâmicos nos quais forma e conteúdo se co-geram, se chocam e se transmutam, revelando que a própria noção de "coisa" é um epifenômeno de relações mais profundas com o caos, a incerteza e a complexidade. 


Capítulo I: O Fundo Informe e a Emergência do Visível (Didi-
Huberman e o Caos Originário)
 



Georges Didi-Huberman, em Semelhança Informe, nos convida a olhar para além da forma aparente, em direção ao informe que a precede e a habita. O informe não é a ausência de forma, mas a sua matriz caótica e potencial. É o reino das texturas, das sombras, das manchas, das forças materiais que ainda não se coagularam em uma figura reconhecível. 

  • Quando o conteúdo define a forma: Nesta perspectiva, o "conteúdo" é precisamente este caos de forças, esta pressão do real informe. A forma emerge como uma resposta a esta pressão. Pense na geologia: o conteúdo mineral, sob pressão e calor extremos, cristaliza-se, gerando formas geométricas precisas (sistemas cúbicos, hexagonais). A forma do cristal é a expressão direta do seu conteúdo atômico e das condições energéticas do seu meio. O conteúdo, aqui, é uma potência que exige a sua própria configuração. 

Capítulo II: A Imaginação Material e os Obstáculos Epistemológicos (Bachelard e a Dialética da Forma) 

Gaston Bachelard complementa esta visão com sua noção de " imaginação material". Para ele, a matéria (o conteúdo) não é inerte, mas carregada de imagens e dinâmicas arquetípicas. A forma é sonhada pela matéria antes de ser pensada pela razão. 

  • Quando as formas se chocam e geram outras formas: Bachelard vê o conhecimento não como uma acumulação linear, mas como uma série de "rupturas". Uma forma de pensamento (uma teoria científica, um paradigma) estabelece-se. No entanto, ao encontrar um fenômeno que não pode conter (um "obstáculo epistemológico"), ela se fragmenta. Deste choque, nasce uma nova forma de pensamento, mais complexa e abrangente. Na química, o modelo atômico de Dalton (esfera indivisível) chocou-se com a descoberta do elétron, gerando o modelo de Thomson ("pudim de passas"), que por sua vez colidiu com o experimento de Rutherford, forjando o modelo planetário. Cada forma teórica emergiu do choque da anterior com um conteúdo novo e rebelde. 



Capítulo III: A Ordem do Mundo como Rede de Correspondências (Granet e a Cosmologia Relacional) 

Marcel Granet, ao descrever o pensamento chinês clássico, oferece uma visão radicalmente relacional. Para ele, o universo não é composto de "substâncias" com "formas", mas de correlações e ritmos. O conteúdo (o Tao, o fluxo da energia vital Qi) não precede a forma; ele é a própria tessitura das relações que constituem as formas. 

  • Quando a forma define o conteúdo: No pensamento chinês, formas simbólicas e rituais (como os diagramas do Yijing - I Ching) não representam o mundo; elas sintonizam o indivíduo ou a sociedade com os ritmos cósmicos. A forma do ritual (sua coreografia, sua música) define e canaliza o conteúdo energético (Qi), ordenando-o e tornando-o eficaz. A forma não é um recipiente, mas um operador cosmológico. Um hexagrama é uma forma que configura um conteúdo de situação, um momento específico na teia de relações universais. 


Capítulo IV: Esferas: A Forma Primordial da 
Co-existência (Sloterdijk e a Imunologia da Forma)
 

Peter Sloterdijk, em Esferas, propõe que a forma fundamental da existência humana não é o ponto, mas a esfera. A esfera é a forma do espaço relacional, imunológico e significativo que os seres humanos constroem ao seu redor, desde o útero materno (a microesfera) até as grandes "cascas" globais da modernidade (macroesferas). 



  • O Processo Total: Conteúdo e Forma em 
    Co constituição Dinâmica: Sloterdijk mostra que a forma (a esfera) e o conteúdo (a relação, o significado, a vida em comum) são co-originários. Um não precede o outro; eles se geram mutuamente. A forma esférica 
    define o espaço de possibilidade do conteúdo (a relação diádica mãe-filho, a comunidade política), e o conteúdo (a necessidade de proteção, de significado) exige a criação contínua de novas formas esféricas. Quando esferas se chocam (culturas, indivíduos, paradigmas), elas podem se fundir, se repeler ou gerar novas esferas, mais complexas, em um processo de "esferogênese" permanente. 



Síntese: A Forma como Fenômeno de Fronteira na Complexidade 

O que este percurso nos revela sobre o caos, a incerteza e a complexidade? 

  1. O Caos como Reservatório de Potência: O informe de Didi-Huberman e o vácuo criativo de onde emerge o Qi em Granet são o caos. Este não é o nada, mas a plenitude indiferenciada de todas as possibilidades formais. É a fonte da inovação e da geração constante. A forma é uma ordem local e temporária extraída deste caos global. 

  1. A Incerteza como Motor do Processo: O choque de formas, descrito por Bachelard, é o momento de incerteza por excelência. É a crise onde o antigo já não serve e o novo ainda não se configurou. Esta zona de turbulência é o cadinho onde novas formas são forjadas. Na física quântica, a "nuvem" de probabilidades (conteúdo incerto) só colapsa em uma forma definida (partícula com posição) através da interação com um observador/ambiente (um choque de contextos). 

  1. A Complexidade como Teia de Co-emergência: A visão de Granet e Sloterdijk nos ensina que a realidade é complexa porque é relacional. Nenhuma forma existe por si só. Ela é um nó em uma rede de influências. Na biologia, a forma de um organismo (um fenótipo) não é determinada apenas pelo conteúdo genético (DNA), mas emerge da complexa interação entre genes, ambiente, desenvolvimento embriológico e acaso (epigenética). A forma viva é um processo, não um produto. 



Conclusão: A Vida das Formas
 

Este tratado conclui que a forma é um verbo, não um substantivo. É o ato de formar-se. É um processo contínuo de negociação entre a potência do caos (o conteúdo informe) e a necessidade de ordem (a configuração). A estabilidade de qualquer forma – de um cristal a uma teoria científica, de uma célula a uma civilização – é sempre provisória e comprada às custas de uma relação dinâmica com as forças da desordem que a rodeiam e a permeiam. 

A grande lição é que o ser é este processo de formação. Somos esferas frágeis, feitas de encontros, choques e sínteses, navegando no oceano do informe, eternamente engajados na poética e violenta tarefa de dar forma ao mundo e a nós mesmos, sabendo que toda forma, por mais bela que seja, carrega em seu seio as sementes da sua própria transmutação e o chamado silencioso do caos de onde um dia emergiu. 

 

 

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