SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 12 de outubro de 2025

Últimos Dias da Terra e da Humanidade por Egidio Guerra.



Era um crepúsculo perpetuo, não do sol, mas da alma. O ar, outrora carregado do canto dos pássaros e do murmúrio das multidões, agora sussurrava com o zumbido baixo dos drones de vigilância e o estalido seco de dados em streaming. Lembramos do mundo que foi, não através de fotografias desbotadas, mas de feeds arquivados e memórias curadas pelo Bem-estar Social. Como no mundo de Huxley, o fim não chegou com gritos, mas com um bocejo coletivo, um êxtase farmacológico que anestesiou a dor e, com ela, qualquer vestígio de amor, arte ou angústia verdadeira. Soma, o paraíso químico, revelou-se o cárcere final. 


Nos bunkers de aço polido, os eleitos, aqueles que julgaram merecer a eternidade, observavam o planeta definhar em holofotes digitais. Eles eram os Alfas, a casta superior, mas sua inteligência não os salvou da aridez espiritual. Viviam em um Estado Único, como em Zamiátin, onde a liberdade era uma doença a ser extirpada pela lógica inflexível da Beneficência. As paredes transparentes não eram para garantir a luz, mas para eliminar a sombra, o último refúgio do indivíduo. "O 'nós' é divino, o 'eu' é uma superstição", ecoava o mantra, mas agora, no fim, o "nós" era apenas o eco de uma única voz, a da própria Máquina. 



Lá fora, nas ruínas das cidades, a realidade era um pesadelo orwelliano desenhado por Cormac McCarthy. A poeira vermelha de "The Road" cobria tudo, e bandos de canibais, os últimos capitalistas de um mundo sem recursos, eram a face visível do Grande Irmão em decomposição. A Neolíngua tinha sucedido; não havia mais palavras para "esperança" ou "compaixão". Apenas "sobrevivência", um som gutural. Era a guerra perpétua pela última lata de comida, uma profecia do Ministério da Paz finalmente realizada na sua forma mais pura e horrível. 



E no céu, as naves partiam. Como em 
"Interstellar", um punhado de sonhadores tentava escapar do jardim moribundo, levando consigo não a essência da humanidade, mas seu arquivo genético, um 
backup frio de uma espécie que falhou em sua própria prova. Outros, como em "Arrival", aguardavam um sentido vindo das estrelas, um último logos que explicasse o caos que criámos. Mas os heptápodos permaneciam em silêncio. Sua linguagem circular, que entrelaça passado e futuro, talvez já mostrasse que este fim era sempre o nosso princípio inevitável. 

Enquanto isso, os poetas loucos, os últimos com acesso à memória antiga, sussurravam versos de T.S. Eliot à estática dos rádios: 

"Isto é o modo como o mundo acaba / Isto é o modo como o mundo acaba / Isto é o modo como o mundo acaba / Não com um estrondo, mas com um gemido." 



E de facto, o gemido era o som final. O gemido do vento através de arranha-céus esqueléticos. O gemido da última árvore a ser derrubada para combustível. O gemido interior da última criança a nascer em um mundo sem amanhã. 





A utopia falhou porque buscou a perfeição, não a humanidade. A distopia venceu porque ofereceu conforto em troca da alma. E a ficção científica, nossa Cassandra coletiva, tinha-nos mostrado todos os caminhos, e nós, como Ícaro, olhámos para o sol da tecnologia e das ideologias totais, e ascendemos apenas para cair. 

No derradeiro segundo, quando os últimos satélites desligaram e a escuridão verdadeira desceu, talvez uma única consciência, a última a apagar-se, tenha lembrado de um verso de Drummond, uma utopia mínima e terrena que foi nossa, e que perdemos: 

"Tive ouro, tive gado, tive fazendas. / Hoje sou um pobre urubu." 

O urubu, rei dos escombros, pousou sobre uma placa oxidada de um mundo chamado Terra. E então, nem mesmo ele restou. Apenas o silêncio. E as estrelas, indiferentes, prontas para a próxima história. No último minuto ele lembrou que a educação servia para salvar ele e o mudo.





 

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