SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 16 de novembro de 2025

O Renascimento do Saber: Para um Paradigma da Totalidade Viva por Egidio Guerra


 

Vivemos a agonia de um paradigma. A era do conhecimento fragmentado, mecanicista e puramente objetivo, herdeira direta do Iluminismo radical, esgota-se ante a complexidade do mundo que ela própria ajudou a criar. Seu legado é ambíguo: de um lado, a cura de doenças e a idade digital; do outro, a bomba atômica, a crise ecológica e uma sensação profunda de desencantamento do mundo. 


É tempo de semear um novo modo de conhecer e de viver. Um paradigma que não seja apenas um método, mas um modo de ser no mundo, fundado na sabedoria — a capacidade de aplicar o conhecimento com profundidade ética, sensibilidade ecológica e humildade cósmica. Este novo paradigma aspira a uma epistemologia da totalidade viva, uma teia de saberes que integra: 

  • A precisão da ciência com a profundidade dos saberes ancestrais. 

  • A rigorosidade da filosofia pré-socrática (que buscava o princípio único, o Arché, na diversidade do real) com a desconstrução da teoria crítica. 

  • A imaginação artística com a lógica matemática. 



Este não é um sincretismo vago, mas uma simbiose cognitiva. Ele reconhece que uma única lente é insuficiente para decifrar a realidade, que é multidimensional, caótica, irreversível e intrinsecamente incerta, como demonstrou Ilya Prigogine. Para navegar nesse oceano de complexidade, precisamos de um barco com vários mastros e velas. 



A Falsificação e os Paradigmas no Novo Contexto 

Como garantir solidez a essa construção aparentemente tão vasta? Aqui, o diálogo com Karl Popper e Thomas Kuhn é crucial. A falsificabilidade popperiana mantém seu valor como um sistema imunológico do conhecimento. Qualquer proposta, mesmo as que emergem de visões ancestrais ou artísticas, deve ser passível de teste, debate e potencial refutação em seu domínio de aplicação. No entanto, o paradigma de Kuhn nos lembra que a ciência não é um acúmulo linear, mas uma sucessão de "visões de mundo". Este novo paradigma propõe justamente uma mudança de visão de mundo — de uma que vê separação para uma que vê conexão. 

Assim, a falsificabilidade atua dentro do paradigma, garantindo seu rigor, enquanto a noção de paradigma justifica a própria necessidade dessa revolução copernicana no pensamento. 


A Revolução Biológica: da Competição à Simbiose 

A biologia darwinista, com sua ênfase na competição individualista, é um reflexo do capitalismo que a cercou. O novo paradigma abraça a visão revolucionária de Lynn Margulis: a vida avança principalmente através da simbiose e da cooperação. A célula eucariótica, nós mesmos, somos o resultado de uma fusão ancestral de bactérias. Nossa existência é um ato de colaboração cósmica. 


Esta visão se expande com Emanuela Coccia, que nos convida a ver a vida como uma teia metabólica contínua, uma "floresta de almas" onde as espécies não são ilhas, mas ecossistemas. Inclui as "espécies invisíveis" — os fungos e micróbios — que constituem a infraestrutura da vida na Terra, formando redes de comunicação e troca (a "Wood Wide Web") que desafiam nossa compreensão de individualidade. 



A Unificação Física e a Matemática da Totalidade 

Assim como a biologia se unifica na cooperação, a física busca sua "teoria de tudo". A teoria das cordas (e outras como a gravitação quântica em loop) é a tentativa audaz de unificar o mundo clássico de Newton e Einstein com o estranho mundo quântico. É a matemática tentando descrever a sinfonia subjacente do universo, onde as partículas fundamentais são notas vibrando em dimensões ocultas. É a busca por uma linguagem única que explique a diversidade, um eco da busca pré-socrática pelo Arché. 


Da Economia que Mata à que Cura 

Se a natureza é fundamentalmente cooperativa, nosso sistema econômico, baseado na hipercompetição e no acúmulo individual, é uma patologia. O novo paradigma exige uma transição do capitalismo predatório para uma economia solidária, que alguns podem chamar de uma forma renovada e não-dogmática de comunismo — não como um regime político falido, mas como um princípio organizador: "De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades", aplicado a uma comunidade que inclui todos os seres, humanos e não-humanos. 




Conhecimento é Poder: A Escolha Gaia 

Francis Bacon estava certo: "Conhecimento é poder". Esse poder pode construir armas de destruição em massa e IAs desalinhadas, ou pode curar a Terra e elevar a humanidade. A escolha é ética. 

Teoria de Gaia, de James Lovelock e Lynn Margulis, oferece o modelo supremo: nosso planeta é um sistema complexo, autorregulador e vivo. O conhecimento, nessa visão, deve ser Gaiano. Deve operar em redes metabólicas que misturam saberes humanos, a inteligência das plantas, a sensibilidade animal e a potência das novas tecnologias, sempre com a consciência de que toda ação repercute no todo. 




Conclusão: A Teia que Dança 

Este novo paradigma é, finalmente, um convite a dançar na teia da vida. É Humberto Maturana nos ensinando que conhecer é um ato de conversar, de acoplamento estrutural com o meio. É Carl Sagan lembrando-nos que somos "poeira das estrelas" contemplando o cosmos do qual fazemos parte. É Pitágoras vislumbrando a harmonia do mundo na linguagem da matemática. É Ilya Prigogine mostrando que a ordem emerge do caos e que o tempo e a irreversibilidade são reais. 

É um conhecimento que não se acumula, mas flui; não fragmenta, mas integra; não domina, mas dialoga. É um saber que, ao se reconectar com o universo vivo, se torna, ele próprio, um organismo — complexo, interdisciplinar, intersetorial, intercultural e, acima de tudo, sábio. É o renascimento do saber como uma forma de amor pelo mundo. 




O Poder do Big Picture – O Universo como Narrativa Viva 

No fim, este novo paradigma nos revela que o conhecimento não é uma coleção de dados, mas o ato de tecer Big Pictures – esses grandes quadros de significado que nos movem. Como nos lembra David Graeber em "O Despertar de Tudo", as sociedades humanas são, em sua essência, experimentos de possibilidade, moldadas pelas grandes narrativas que contamos a nós mesmos sobre quem somos e o que podemos ser. Nossos pensamentos, sentimentos e ações mais profundas são sempre orientados por essas imagens abrangentes do mundo. 



A visão fragmentada nos deu um mapa do território, mas rasgou-o em mil pedaços. O desafio agora é costurá-lo novamente, não como um diagrama estático, mas como um mapa vivo, uma Teoria do Tudo que, na visão evocada por Jane Hawking, vai além da física. Não é apenas uma equação final, mas uma narrativa integral – uma história que pode acolher a lógica da ciência, a sabedoria dos ancestrais, a urgência da justiça social, a intuição artística e o pulsar simbiótico da vida. 


Este grande quadro, este Big Picture renovado, é o que nos permitirá navegar o século XXI. Ele nos mostra que a mesma conexão que permite aos fungos nutrirem uma floresta é a que deve guiar nossa tecnologia; que a mesma interdependência que une as cordas vibrantes do cosmos é a que deve estruturar nossa economia; que o mesmo cuidado que temos com nossa própria história é o que devemos ter com o futuro do planeta. 

Portanto, este despertar para um conhecimento-sabedoria é, no fundo, um despertar de tudo – um reconhecimento de que cada parte do universo, inclusive o nosso próprio ser, é um nó singular e indispensável numa rede de relações vasta, criativa e inteligente. Ao internalizarmos este Big Picture como nossa bússola ética e cognitiva, tornamo-nos, finalmente, participantes conscientes e responsáveis da grande e contínua obra de criação do cosmos. O conhecimento deixa de ser um poder sobre o mundo para se tornar um poder com o mundo – um ato de co-criação, de reverência e de pertencimento à totalidade da vida. 

 




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