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quarta-feira, 1 de outubro de 2025

As Cem Linguagens da Criança: A Abordagem de Reggio Emilia e seu Impacto Integral no Desenvolvimento Humano e Social por Egidio Guerra




A abordagem educacional desenvolvida na região italiana da Emilia-Romagna, notadamente na cidade de Reggio Emilia, é um dos mais importantes referenciais pedagógicos do mundo. Frequentemente associada ao pedagogo Loris Malaguzzi, seu idealizador, esta filosofia revoluciona a compreensão sobre a infância. A expressão "As Cem Linguagens da Criança" é a metáfora central que sintetiza a crença de que a criança é um ser rico, competente e dotado de inúmeras formas de expressar, comunicar e compreender o mundo. Este texto detalhará essa abordagem, com base na interpretação de especialistas como Maria Alice Proença, e explorará como seus pilares – a ética, a estética, a arte, as brincadeiras, o registro e a documentação pedagógica – podem potencializar o letramento em áreas fundamentais e resultar no desenvolvimento de capacidades humanas e econômicas, tal como testemunhado na história da própria Emilia-Romagna. 


A Filosofia Central: As Cem Linguagens e o Papel do Adulto
 

Malaguzzi contestava a visão tradicional de uma criança como uma "tábula rasa" ou um vaso vazio a ser preenchido. Para ele, a criança possui "cem linguagens" (e mais cem, cem, cem) para pensar e aprender. Essas linguagens vão muito além da fala e da escrita; incluem o desenho, a pintura, a escultura, a música, a dança, o teatro, o brincar simbólico, a construção e muitas outras. O papel da escola não é ensinar, no sentido tradicional, mas proporcionar contextos onde essas linguagens possam ser ativadas, exploradas e combinadas. 


Nesse contexto, o professor deixa de ser um transmissor de conhecimento para tornar-se um pesquisador, um documentarista e um provocador. Ele observa atentamente as crianças, escuta suas hipóteses e interesses, e, a partir disso, propõe projetos e experiências que ampliem suas investigações. 

Os Pilares da Abordagem na Perspectiva de Maria Alice Proença 

A obra de Maria Alice Proença no Brasil foi fundamental para difundir e detalhar os mecanismos práticos dessa abordagem. Ela destaca a interdependência de vários elementos: 

  1. A Ética: A ética em Reggio Emilia é a base do relacionamento. Manifesta-se no respeito incondicional pela criança, pela sua cultura, família e comunidade. É uma ética da escuta, onde a opinião e a perspectiva de cada criança são valorizadas. A gestão democrática da sala de aula, onde as regras são construídas coletivamente, é um exercício de cidadania desde a mais tenra idade. 

  1. A Estética: A estética não se trata apenas de "coisas bonitas", mas da qualidade do ambiente e das experiências. O ambiente é considerado o "terceiro professor". Espaços arejados, cheios de luz natural, organizados com materiais naturais e de alta qualidade, convidam à exploração e à descoberta. A beleza do ambiente sensibiliza a criança, aguça sua percepção e comunica que ela é digna de um espaço cuidado e inspirador. 

  1. A Arte e as Brincadeiras: Estes são os veículos primários das "cem linguagens". A arte não é uma atividade complementar, mas uma forma de pensamento. Ao desenhar, modelar argila ou compor um mosaico, a criança está raciocinando, resolvendo problemas, representando teorias sobre o mundo. As brincadeiras, especialmente as simbólicas, são laboratórios de vida social, onde se negociam significados, se desenvolvem a empatia e se assimilam complexas regras de convivência. 

  1. O Registro e a Documentação Pedagógica: Este é o coração da prática reflexiva do professor. O registro é a anotação das falas, ações e interações das crianças. A documentação pedagógica vai além: é a organização e interpretação desses registros, frequentemente utilizando fotografias, vídeos e transcrições, que são dispostos em painéis ou portfólios. Esse processo serve para: 

  1. Para a criança: Tornar visível o seu processo de pensamento, permitindo que ela retome, reflita e reformule suas ideias. 

  1. Para o professor: Compreender a profundidade do aprendizado do grupo, avaliar sua própria prática e planejar os próximos passos. 

  1. Para os pais: Involvê-los de forma significativa no projeto educativo, mostrando o valor do trabalho realizado pelas crianças. 


 A aplicação desses pilares tem um impacto profundo e transversal no desenvolvimento de competências: 

  • Letramento Matemático: Em vez de exercícios repetitivos, a matemática emerge de problemas reais. Ao construir uma torre com blocos, as crianças exploram equilíbrio, simetria, proporção e contagem. Num projeto sobre um mercado, surgem naturalmente conceitos de quantidade, medida, peso e operações de compra e venda. A matemática deixa de ser abstrata para se tornar uma ferramenta útil e fascinante. 

  • Português (Língua Portuguesa): A linguagem verbal é enriquecida pelas outras "linguagens". A criança que conta uma história através de um teatro de sombras está desenvolvendo narrativa, vocabulário e estruturação de ideias. A documentação pedagógica, ao registrar suas falas e devolvê-las de forma organizada, valida a linguagem oral e a incentiva como precursor da escrita. 

  • Ciências e História: A abordagem é intrinsecamente investigativa. Um interesse das crianças por minhocas pode virar um projeto científico sobre ecossistema do solo, decomposição e biologia. A história local pode ser explorada através de entrevistas com os avós, construção de maquetes da cidade ou reprodução de antigos ofícios, conectando passado e presente de forma viva e significativa. 

  • Autoestima, Autonomia, Imaginação e Capacidades Críticas: O ambiente que valoriza todas as formas de expressão e escuta as hipóteses das crianças fortalece profundamente sua autoestima e autonomia ("minhas ideias têm valor"). A constante resolução de problemas em projetos complexos alimenta a imaginação e as capacidades críticas. A criança aprende a argumentar, a defender seu ponto de vista e a considerar o dos outros, tornando-se um cidadão participativo. 


Da Sala de Aula para a Economia: O Caso da Emilia-Romagna 

A história da Emilia-Romagna é fundamental para entender a gênese dessa abordagem. Após a Segunda Guerra Mundial, a região, devastada, foi reconstruída por comunidades fortemente baseadas em valores cooperativistas. Pais e mães, muitos deles trabalhadores em cooperativas, se uniram para construir as primeiras escolas de Reggio Emilia. Eles acreditavam que uma educação baseada na colaboração, no respeito mútuo e na capacidade de resolver problemas coletivamente era a base para uma sociedade mais justa e próspera. 

Há uma ligação direta entre a pedagogia e o sucesso econômico da região: 

  • Qualidade de Vida: Crianças que desenvolvem autonomia, pensamento crítico, criatividade e capacidade de colaboração tornam-se adultos mais realizados, resilientes e inovadores. Isso gera uma sociedade com maior capital social, onde a confiança e a cooperação são altas. 

  • Economia Inovadora: A Emilia-Romagna é um dos polos econômicos mais ricos e inovadores da Itália, conhecida por seus distritos industriais de pequenas e médias empresas, muitas delas cooperativas. A capacidade de inovar, de trabalhar em rede e de resolver problemas complexos – habilidades cultivadas desde a infância na abordagem Reggio Emilia – é exatamente o combustível para esse tipo de economia. A escola não forma apenas trabalhadores, forma empreendedores, cidadãos e cooperadores. 

Conclusão 

A abordagem de Reggio Emilia, tão bem detalhada por estudiosos como Maria Alice Proença, é muito mais que um método pedagógico. É uma filosofia de vida que coloca a criança no centro, como um ser de potencial infinito. Ao integrar de forma indissociável a ética, a estética, a arte, o brincar e a documentação reflexiva, ela não apenas melhora o letramento matemático ou em línguas, mas forja competências para a vida. Desenvolve indivíduos com autoestima para sonhar, autonomia para realizar, imaginação para inovar e consciência crítica para cooperar. O exemplo da própria Emilia-Romagna demonstra que investir numa educação de qualidade, centrada no desenvolvimento humano integral e na história da Emilia-Romagna, é o investimento mais inteligente que uma sociedade pode fazer, gerando não apenas melhores pessoas, mas também uma economia mais dinâmica, criativa e, acima de tudo, humana. 



 

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