TEMA: TRABALHO, ESTÉTICA E FORMAÇÃO HUMANA: TRINTA ANOS DA ONG EDISCA NA CONSTRUÇÃO DE CASAS POÉTICAS E NA EDUCAÇÃO DO INVISÍVEL
LINHA DE PESQUISA: EDUCAÇÃO, ESTÉTICA E SOCIEDADE. EIXO TEMÁTICO: TRABALHO, ESTÉTICA E FORMAÇÃO HUMANA
1. JUSTIFICATIVA E DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA DA PESQUISA
A educação contemporânea, frequentemente subjugada a uma lógica instrumental e a métricas de produtividade, tem negligenciado a formação integral do ser, privilegiando dimensões tangíveis em detrimento do que se poderia chamar de "educação do invisível" – território dos sentimentos, dos símbolos, da ética e da imaginação. Contra essa corrente, emergem práticas educativas que colocam a arte e a estética no centro do processo formativo, entendendo-as não como atividades complementares, mas como eixos estruturantes para o desenvolvimento humano. A ONG EDISCA (Escola de Dança e Integração Social para Criança e Adolescente), em Fortaleza-CE, com três décadas de atuação ininterrupta, configura-se como um caso paradigmático desse paradigma. Sua atuação vai além do ensino da dança, articulando de forma sistêmica reforço escolar em português e matemática, biblioteca, laboratório de desenhos e colagens, criação de espetáculos de balé, e um amplo suporte sociofamiliar que inclui alimentação, transporte, saúde e programas de geração de trabalho e renda para as mães, envolvendo também a comunidade.
O problema de pesquisa que se delineia é a necessidade de compreender, documentar e analisar os processos pedagógicos da EDISCA à luz de uma perspectiva que valoriza a estética como trabalho formativo e a formação humana como uma construção ética e existencial. A pesquisa parte da premissa de que projetos como este operam a construção de "casas poéticas" – espaços relacionais de acolhimento, nos termos de Franco B. e Marina Marcondes Machado –, onde se educa para a dignidade, combatendo a "vergonha tóxica" analisada por Mario Jacoby por meio da "cinética da alma" que a arte proporciona (BONFITTO). A pergunta central é: como a integração entre trabalho pedagógico, expressão estética e suporte social na EDISCA produz uma
formação humana integral, capaz de gerar não apenas bailarinos profissionais, mas sujeitos autônomos, críticos e criativos, que reconhecem sua dignidade e agem no mundo com sensibilidade e responsabilidade?
A delimitação do estudo recairá sobre a análise dos trinta anos da instituição, investigando sua história, pedagogia e impactos, com foco nos processos de aprendizagem visíveis e invisíveis dos alunos. A pesquisa se justifica pela relevância social e acadêmica de se documentar uma experiência bem-sucedida que articula, na prática, conceitos fundamentais de pensadores como Hannah Arendt (2014) (ação e responsabilidade), Henri Wallon (2007) (corporeidade e afeto), Lev Vigotski (2007) (interações sociais), Paulo Freire (1996) (autonomia), Jacques Rancière (2002) (sensibilidade e igualdade), Edgar Morin (2020) (pensamento complexo), Loris Malaguzzi (2016) (cem linguagens) e Marina Marcondes (2023) (perspectiva artístico existencial). A abordagem proposta, inspirada no texto "A Educação do Invisível" (MARRASÉ, 2022), busca superar a visão meramente instrumental da educação, propondo uma análise que considere os ambientes invisíveis, os afetos e a produção de presença (GUMBRECHT, 2010, p. 57) como elementos centrais do trabalho educativo. A viabilidade técnica está assegurada pela acessibilidade da instituição e pela clareza metodológica baseada no registro e documentação pedagógica (PROENÇA, 2021).
2. OBJETIVOS
2.1. Objetivo Geral
Analisar a proposta pedagógica da ONG EDISCA em seus trinta anos de atuação, investigando como a integração entre trabalho artístico (dança, colagem), suporte educacional (reforço, biblioteca) e apoio sociofamiliar configura uma "casa poética" que promove uma formação humana integral, baseada na dignidade, na autonomia e na produção de presença, contra a lógica da educação bancária e mercantilizada.
2.2. Objetivos Específicos
1. Reconstituir a história e os fundamentos pedagógicos da EDISCA, identificando como os princípios das "cem linguagens da criança" (MALAGUZZI, 2016), da corporeidade (WALLON, 2007), das interações sociais (VIGOTSKI, 2007) e da
autonomia (FREIRE, 1996) são operacionalizados em sua estrutura organizacional e em suas práticas cotidianas.
2. Documentar e analisar, através do método de registro e documentação pedagógica (PROENÇA, 2021), os processos de aprendizagem dos alunos, focalizando as descobertas corporais e gestuais na dança, a expressão verbal e afetiva, o desenvolvimento da curiosidade nas oficinas e a construção de atitudes de disciplina, presença e autonomia.
3. Compreender as percepções dos diferentes atores (alunos, ex-alunos, educadores, famílias) sobre os impactos da experiência na EDISCA em suas trajetórias de vida, especialmente no que se refere à restauração da dignidade, ao engajamento comunitário, à saúde mental e à formação de um projeto de vida ético e estético.
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O referencial teórico deste projeto será construído a partir de um diálogo transdisciplinar, articulando educação, filosofia, arte e sociologia, com base no texto "A Educação do Invisível", que serve como eixo condutor.
O texto base estabelece os pilares da pesquisa: a arte como cinética da alma e restauradora da dignidade (JACOBY, 2019; BONFITTO, 2002), a construção de "casas poéticas" como ambientes de acolhimento (MACHADO, 2023) e a ação no mundo como proposto por Hannah Arendt (2014). Esta fundamentação orientará a análise da EDISCA como um espaço que educa para além do visível, trabalhando com os afetos, os símbolos e as relações. Esta fundamentação orientará a análise da EDISCA como um espaço que educa para além do visível, trabalhando com os afetos, os símbolos e as relações.
A Estética como Trabalho Formativo: A concepção de trabalho neste projeto alinha-se à ideia de poiesis, um fazer criativo que transforma a si mesmo e ao mundo. A dança e as artes visuais na EDISCA serão entendidas como um trabalho estético que disciplina o corpo, mas também libera a expressão, em linha com a noção de "produção de presença" de Hans Ulrich Gumbrecht (2010), que contrasta com a educação baseada na interpretação e no consumo.
Trataremos da educação integral Dialogaremos com a abordagem de Reggio Emilia e as "cem linguagens" de Loris Malaguzzi (2016), para quem a estética e a ética são indissociáveis na educação. A teoria dialética de Henri Wallon (2007) fundamentará a análise do desenvolvimento infantil pela integração entre afeto, movimento e cognição. Vigotski (2007) contribuirá com o conceito de zona de desenvolvimento proximal e mediação social, essenciais para entender as interações nas oficinas coletivas. Paulo Freire (1996) oferecerá a crítica à "educação bancária" e a defesa da autonomia, enquanto Jacques Rancière (2002) fornecerá a lente para analisar a redistribuição do sensível operada quando crianças em situação de vulnerabilidade ocupam o palco.
Edgar Morin (2020), com seus "sete saberes necessários à educação do futuro", oferece o arcabouço para entender a EDISCA como um sistema complexo que educa para a compreensão humana, a ética e a cidadania terrestre, integrando conhecimentos de forma não fragmentada.
A obra de Marina Marcondes Machado (2023) será central para ancorar a análise na realidade brasileira, entendendo a arte como uma maneira de ser e de existir no mundo, o que corrobora a ideia de uma "autobiografia de aprendizagem" proposta para a pesquisa.
Para compreender a singularidade e o poder de impacto dos espetáculos da EDISCA, o pensamento de Walter Benjamin oferece ferramentas preciosas. Em sua obra seminal A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, Benjamin estabelece uma distinção crucial entre a obra de arte tradicional, carregada de aura – uma qualidade, presença no aqui e agora –, e a obra de arte reproduzível, que vê sua aura se esvair. O espetáculo de balé da EDISCA, encenado por aquelas crianças específicas, naquele contexto comunitário único, é um evento “aurático” por excelência. Sua essência está na presença física e comunitária, insubstituível e não massificável, constituindo-se como um antídoto à lógica da indústria cultural. Além disso, Benjamin nos ajuda a pensar a formação dos sujeitos. Ele distinguia entre a Erfahrung (experiência rica, integrada à tradição e à narrativa) e a Erlebnis (vivência fragmentada, típica do choque perpétuo da vida moderna metropolitana). A EDISCA, ao construir sua "casa poética", oferece um espaço de proteção onde as crianças podem converter Erlebnis (as vivências traumáticas da pobreza e da invisibilidade) em Erfahrung – experiências significativas, narráveis e formativas, corporificadas na disciplina da dança e na coletividade do espetáculo. Por fim, a noção benjaminiana de que "o aparelho técnico não emancipa o ser humano, mas
primeiro o submete, antes de ser por ele utilizado" (BENJAMIN, 2012, p. 99) pode ser transposta para o "aparelho corporal". A técnica do balé, em um contexto opressor, poderia submeter o corpo. Na EDISCA, no entanto, a técnica é apropriada pelas crianças como um instrumento de emancipação, permitindo-lhes, nas palavras do próprio filósofo, "organizar o novo na produtividade" e não apenas se adaptar ao existente. Dessa forma, o corpo discente, ao dominar a linguagem exigente do balé, não se submete a um código, mas o utiliza para produzir uma nova presença no mundo, política e esteticamente significativa.
Para além dos referenciais já elencados, o diálogo com a Filosofia da Arte aprofundará a compreensão do "trabalho estético" realizado. A noção de "arte como experiência" de John Dewey (2010) fundamenta a compreensão das atividades da EDISCA como processos vivos e integrais de formação. Na mesma direção, a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty (2015) oferece as ferramentas para analisar como a dança, enquanto linguagem corporal, constitui um novo modo de as crianças habitarem o mundo e se perceberem nele. Por fim, a concepção de "redistribuição do sensível" de Jacques Rancière consolida a compreensão do palco como um espaço político de visibilidade e reconhecimento, onde uma nova comunidade sensível é forjada.
4. METODOLOGIA
A pesquisa adotará uma abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso único e intrínseco, aprofundando-se na singularidade da experiência da EDISCA. O procedimento metodológico será orientado pela documentação pedagógica, conforme proposto por Maria Alice Proença, entendida não como um simples registro, mas como um processo de escuta, observação, interpretação e narrativa dos processos de aprendizagem.
4.1. Pesquisa Documental e Bibliográfica: Será realizada uma revisão aprofundada da literatura dos referenciais teóricos elencados. Paralelamente, será feita a análise de documentos da EDISCA: projetos pedagógicos, registros históricos, relatórios de atividades, portfólios de alunos, programas de apoio familiar e acervo audiovisual de espetáculos, visando atingir o Objetivo Específico 1.
4.2. Trabalho de Campo e Produção de Dados: O trabalho de campo será realizado por meio de:
∙ Observação Participante com Registro Pedagógico: inserção no cotidiano da instituição (ensaios, oficinas de colagem, momentos na biblioteca, aulas de reforço) por um período definido. A observação terá como foco a produção de registros pedagógicos (narrativas descritivas, fotografias, coletas de produções das crianças) que capturem os "invisíveis" – os gestos, os diálogos, as hesitações, as conquistas, os afetos –, constituindo a "autobiografia de aprendizagem" dos alunos.
∙ Entrevistas Narrativas e Semiestruturadas: Serão conduzidas entrevistas com atores-chave: fundadores (para a história institucional), coordenadores, educadores de dança e de reforço, pais (especialmente mães envolvidas nos programas de geração de renda), alunos e ex-alunos. As entrevistas visarão capturar as histórias de vida, as percepções sobre os impactos da EDISCA na dignidade, autonomia e projeto de vida. A seleção dos entrevistados será intencional, buscando a diversidade de experiências.
4.3. Análise e Interpretação dos Dados: Os dados gerados (documentos, registros de observação e transcrições de entrevistas) serão submetidos à Análise de Conteúdo Temática (BARDIN). A partir da imersão no material, serão identificadas unidades de significado e categorizadas em eixos analíticos como: "Casas Poéticas e Acolhimento", "A Arte como Restauradora da Dignidade", "Corporeidade e Produção de Presença", "Vozes e Autonomias" e "Impactos Invisíveis: Saúde Mental e Pertencimento". A interpretação consistirá em um diálogo constante entre essas categorias empíricas e o quadro teórico, particularmente ancorado no texto "A Educação do Invisível".
5.CRONOGRAMA
6.REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. 12. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto, Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 2016.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 170-212.
BONFITTO, Matteo. O ator compositor: a poética do intérprete cênico. São Paulo: Perspectiva, 2002.
DEWEY, John. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FRANCO, Benjamin. Casas poéticas: o espaço relacional como ato educativo. São Paulo: Editora Ilustrada, 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2010.
JACOBY, Mario. A vergonha tóxica: o legado oculto do trauma. Tradução de Luís Carlos de M. G. Lopes. Petrópolis: Vozes, 2019.
MACHADO, Marina Marcondes. Para as crianças de agora: uma perspectiva artístico-existencial. In: MACHADO, Marina Marcondes (Org.). A escola que eu quero para as crianças de agora. Petrópolis: Vozes, 2023. p. 15-30.
MALAGUZZI, Loris. História, ideias e filosofia básica. In: EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. (Org.). As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Tradução de Dayse Batista. Porto Alegre: Penso, 2016. p. 19-40.
MARRASÉ, José Manuel. A educação invisível: inspirar, surpreender, emocionar, motivar. São Paulo: Paulinas, 2022.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 5. ed. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva, Jeanne Sawaya. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2020.
PROENÇA, Maria Alice. A documentação pedagógica como ferramenta de avaliação na educação infantil. In: PROENÇA, Maria Alice (Org.). Avaliação na educação infantil: diálogos com a documentação pedagógica. Curitibia: Appris, 2021. p. 45-68.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. Tradução de José Cipolla Neto, Luís Silvestre Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. Tradução de Ana Maria Rabaça. Lisboa: Edições 70, 2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário