SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Vincennes: A Universidade que Ousou Sonhar (e Revolucionar a Educação) Por Egidio Guerra.



A Universidade é pública quando os critérios e avaliações são públicos, até do Congresso se cobra transparência  

No outono de 1968, em meio aos ecos dos protestos estudantis de Maio de 68 que abalaram a França, nascia uma experiência educacional única e radical: o Centro Universitário Experimental de Vincennes (postualmente conhecido como Universidade Paris 8). Criado por decreto do então ministro da Educação, Edgar Faure, Vincennes não era apenas uma nova universidade; era um laboratório vivo, uma resposta concreta às críticas de que o ensino superior francês era elitista, engessado e desconectado da sociedade real. 

O Contexto: O Espírito de Maio de 68 

O lema de Maio de 68, "A imaginação no poder", encontrou em Vincennes seu território de aplicação prática. Os estudantes exigiam uma educação mais relevante, democrática e menos autoritária. Vincennes foi concebida para ser o antídoto para a "velha Sorbonne", um espaço onde a hierarquia seria desmontada e o conhecimento, radicalmente reinventado. 

A Abordagem Pedagógica Revolucionária 

A pedagogia de Vincennes era sua espinha dorsal radical. Ela foi construída sobre alguns pilares fundamentais: 

  1. Interdisciplinaridade Baseada em Temas: Ao invés de departamentos estanques (História, Sociologia, etc.), Vincennes organizou-se em "disciplinas" e "temas" comuns que cruzavam as fronteiras do saber. Um estudo sobre "a cidade" poderia unir urbanistas, sociólogos, economistas, cineastas e filósofos. O foco não era acumular conhecimento isolado, mas compreender problemas complexos da sociedade a partir de múltiplos ângulos. 

  1. A Democratização Radical do Acesso e do Conhecimento: 

  1. Sem Diplomas para Entrar: Vincennes aboliu a exigência do baccalauréat (equivalente ao vestibular) para a matrícula em vários cursos. Isso permitia o ingresso de trabalhadores, sindicalistas, autodidatas e quaisquer pessoas interessadas, independentemente de sua formação formal. Era o "povo de verdade" não apenas como objeto de estudo, mas como agente ativo na produção do saber. 

  1. Produção, não apenas Reprodução: O objetivo não era que os alunos decorassem e repetissem o cânone estabelecido. Valorizava-se a criação, a pesquisa pessoal e a produção de novos conhecimentos, muitas vezes ligados a lutas sociais (feminismo, antipsiquiatria, anticolonialismo). 

  1. A Nova Relação entre Professor e Aluno: A hierarquia tradicional foi minimizada. Os professores eram chamados pelo primeiro nome, as assembleias decidiam coletivamente sobre os rumos dos cursos, e a autoridade era baseada no argumento, e não no cargo. 

Como Funcionava na Prática: As Aulas e as Disciplinas 

O ambiente em Vincennes era caótico, vibrante e intensamente criativo. As aulas frequentemente aconteciam em barracões de madeira, símbolo de sua provisoriedade e afastamento da grandiosidade arquitetônica tradicional. 

  • Disciplinas "Proibidas": Vincennes tornou-se famosa por abrigar disciplinas então marginalizadas no meio acadêmico francês. O Departamento de Psicanálise era um dos mais famosos do mundo. Os estudos de CinemaMúsica ContemporâneaGeografia Urbana e Línguas Orientais eram lecionados de forma pioneira e crítica. 

  • Metodologia das Aulas: As aulas eram mais debates do que palestras. Havia uma forte ênfase em seminários, trabalhos em grupo e projetos práticos. A teoria era constantemente confrontada com a prática e com a experiência vivida dos próprios alunos. 

Os Professores: Uma Constelação de Mentes Radicais 

O corpo docente foi uma reunião de intelectuais de esquerda e pensadores iconoclastas, muitos deles excluídos do sistema universitário tradicional. Entre os nomes mais célebres estavam: 

  • Michel Foucault (Filosofia): Suas aulas eram eventos lotados, onde ele desenvolvia suas ideias sobre poder, saber e instituições. 

  • Gilles Deleuze (Filosofia): Leccionou sobre cinema e filosofia, germinando ideias que se tornariam livros fundamentais. 

  • Hélène Cixous (Literatura): Fundou o centro de pesquisas em Estudos Feministas, um dos primeiros da Europa. 

  • Jacques Rancière (Filosofia): Questionava a noção do "mestre ignorante" e a hierarquia do saber. 

  • Jean-François Lyotard (Filosofia): Lecionou em Vincennes antes de publicar sua obra seminal "A Condição Pós-Moderna". 

Desafios e o Fim de Vincennes 

A radicalidade de Vincennes gerou imensa hostilidade desde o início. 

  1. Oposição Política: Para a direita e até para setores mais conservadores da esquerda, Vincennes era um "antro de subversão" e um "laboratório do caos". 

  1. Ameaças e Pressão: A universidade foi alvo constante de ataques na mídia e no parlamento. 

  1. O Golpe Final: Em 1980, sob o governo de Valéry Giscard d'Estaing, o decreto de fechamento foi assinado. O argumento oficial foi a necessidade do terreno para expandir o Bois de Vincennes, mas a motivação política era evidente. A universidade não foi "extinta", mas deslocada para Saint-Denis, na periferia norte de Paris, tornando-se a Universidade Paris 8. O espírito de Vincennes sobreviveu, mas muito de sua estrutura experimental e radical foi sendo diluída ao longo dos anos sob pressões administrativas e orçamentárias. 

Vincennes e a Escola de Frankfurt: Singularidades e Diferenças 

Embora ambas fossem críticas radicais da sociedade, existem distinções fundamentais: 

  • Escola de Frankfurt: Era um instituto de pesquisa composto por um grupo coeso de teóricos (Horkheimer, Adorno, Marcuse) que desenvolviam uma teoria crítica da sociedade a partir do marxismo, da psicanálise e da filosofia. Era, em grande parte, uma reflexão de elite intelectual. 

  • Vincennes: Era uma universidade de ensino massivo e experimental. Sua radicalidade não estava apenas no conteúdo do pensamento, mas na prática pedagógica e na estrutura institucional. Enquanto Frankfurt teorizava sobre a "indústria cultural", Vincennes criava departamentos de cinema e música para produzir cultura. Vincennes era a prática da teoria crítica em forma de instituição educacional. 

Livros e Autores que Falaram Sobre Vincennes 

  • "Vincennes: Une Aventure de la Pensée Critique" (vários autores): Coletânea fundamental de depoimentos e análises. 

  • "La Rupture de Vincennes" de Charles Soulié: Analisa sociologicamente a criação e o fim da universidade. 

  • "Leçons sur la Leçon" de Pierre Bourdieu: O sociólogo, embora crítico de alguns aspectos, reconhecia a importância da experiência. 

  • Muitos dos professores, como Foucault, Deleuze e Lyotard, carregaram para suas obras posteriores as questões e os debates vividos em Vincennes. 

Impactos Duradouros na Educação 

O legado de Vincennes é profundo e ainda ecoa, especialmente no debate sobre as universidades públicas financiadas pelo povo: 

  1. Educação como Direito, não Privilégio: Vincennes reforçou a ideia de que a universidade pública, paga com impostos de todos, deve ser acessível a todos, rompendo barreiras burocráticas e académicas. 

  1. Interdisciplinaridade como Norma: A ideia de que os grandes problemas sociais exigem abordagens que cruzam disciplinas tornou-se um padrão (mesmo que ainda não plenamente realizado) em universidades inovadoras ao redor do mundo. 

  1. Valorização de Novas Áreas do Saber: A legitimação acadêmica de estudos como Cinema, Gênero, Psicanálise e Cultura Pop deve muito à coragem pioneira de Vincennes. 

  1. Universidade Engajada: Vincennes é um arquétipo da universidade que não teme se envolver com as questões políticas e sociais do seu tempo, entendendo que a produção de conhecimento não é neutra. 

Conclusão 

Vincennes existiu por pouco mais de uma década, mas sua chama queimou com intensidade extraordinária. Ela materializou, como poucas instituições o fizeram, o ideal de uma educação verdadeiramente democrática, onde o povo não é apenas o destinatário, mas o coautor do conhecimento. Seu fim foi político, mas sua semente germinou. Ela permanece como um farol e um lembrete poderoso: uma universidade pública, sustentada pelo dinheiro do povo, tem o dever de ser um espaço de experimentação, de crítica e, acima de tudo, de esperança para que outro mundo – e outra forma de conhecê-lo – são possíveis. 

 

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