SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sábado, 13 de setembro de 2025

A Sabedoria do Ser: Para Além do Rio de Heráclito por Egidio Guerra

 


Perante um futuro imprevisível, onde a lógica tropeça e a história cala, a angústia humana busca um porto. Os pré-socráticos, esses primeiros navegadores do pensamento, não nos oferecem um mapa detalhado do porvir, mas sim uma bússola interior fundada na natureza última da realidade. A sua sabedoria convida-nos a uma jornada espiritual que começa no reconhecimento de uma verdade eterna para lá da mudança. 

Parmênides e o Porto Imóvel do Ser 

Na sua revelação divina, Parmênides apresenta-nos o caminho da Verdade ( Aletheia): o Ser é, e não pode não-ser. É uno, imutável, intemporal, completo. Perante o turbilhão das mudanças – que ele atribuirá ao caminho da opinião (Doxa), ilusório e enganador –, a nossa primeira capacidade espiritual é a de discernir. Discernir entre o que flui e perece (o mundo dos sentidos) e o que permanece e é (a essência da realidade). 

Lidar com o imprevisível, então, não começa por tentar prever o próximo movimento do rio, mas por encontrar repouso na sua margem. É uma sabedoria de reconhecimento: entender que por trás de toda a agitação, há uma base estável, um fundamento indestrutível. A nossa mente, quando se aquieta da incessante busca por explicações lógicas e históricas, pode tocar este Ser. Esta não é uma fuga, mas uma ancoragem. É a perceção de que, espiritualmente, já possuímos o que é eterno, mesmo enquanto o corpo temporal navega pela incerteza. 


Heráclito e a Sabedoria de Nadar no Rio 

Se Parmênides nos dá a margem, Heráclito joga-nos de volta ao rio. "Tudo flui" (Panta Rhei). O imprevisível não é uma anomalia; é a lei fundamental do cosmos. A sabedoria hereclitiana não é a de parar o fluxo, mas de fluir com ele. O Logos, a razão profunda que rege todas as coisas, manifesta-se na harmonia dos contrários, no jogo dinâmico entre criação e destruição. 

Aqui, a capacidade espiritual é a de adaptação harmoniosa. É a coragem de aceitar que o futuro será diferente, de abraçar a transformação como parte de uma ordem maior, ainda que oculta. É uma sabedoria que opera para além da lógica linear, pois entende que a vida e a morte, a saúde e a doença, a paz e a guerra são pares dinâmicos que se definem mutuamente. Lidar com o imprevisível é confiar no Logos, mesmo quando a sua lógica nos escapa. É encontrar paz no próprio movimento.


 

A Síntese: A Centelha Divina e o Conhece-te a Ti Mesmo 

Outros pensadores completam este quadro. Os pitagóricos dir-nos-iam que a harmonia do cosmos (a música das esferas) pode ser sentida através da purificação da alma e do cultivo de uma matemática sagrada, uma intuição das proporções eternas que governam o caos aparente. 

Empédocles falaria do ciclo do Amor (Philia) e do Ódio (Neikos). As mudanças imprevisíveis são os movimentos destas forças cósmicas. A nossa sabedoria estaria em cultivar o Amor interior – a força unificadora – para criar ilhas de ordem e compaixão num mar de contingência, entendendo que fazemos parte deste jogo divino. 



Conclusão:
A Morada no Eterno 

A resposta pré-socrática à imprevisibilidade é, portanto, dupla e profunda: 

  1. Ancorar-se no Eterno (Parmênides): Cultivar a quietude interior pelo reconhecimento de que a nossa verdadeira essência participa do Ser imutável. Isto confere uma serenidade inabalável. 

  1. Dançar com o Devir (Heráclito): Desenvolver a flexibilidade espiritual para aceitar e fluir com a mudança, confiando numa ordem subjacente (Logos) que conecta todas as coisas, mesmo os eventos mais caóticos. 

A sabedoria final, ecoando o "Conhece-te a ti mesmo" que viria a ser central na filosofia, é esta: o imprevisível só é aterrador enquanto nos identificamos exclusivamente com o que é transitório – o corpo, as posses, as circunstâncias. Ao descobrirmos em nós mesmos a centelha do Uno parmenidiano e a capacidade de fluir com o Logos heraclitiano, encontramos uma morada interior que nenhuma mudança externa pode corromper. A verdadeira espiritualidade, nestes primeiros pensadores, é a arte de viver no tempo com a sabedoria do intemporal. 



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