SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Alfabetizando Mundos Únicos: Desafios e Caminhos para o Letramento Autista por Egidio Guerra.


A alfabetização, entendida como a aquisição do código escrito, e o letramento, como sua prática social e funcional, representam um dos pilares do desenvolvimento humano. No entanto, quando se trata de crianças autistas, esse processo transcende a técnica e adentra um território de singularidades, demandando uma reavaliação profunda do que significa "ler" e "escrever" o mundo. Os desafios são reais, mas as possibilidades, quando se enxerga além dos métodos tradicionais, são infinitas. 

As Bases do Desafio: Interseções entre Neurociência, Biologia e Educação 



O autismo é uma condição neurobiológica inata, como bem explicam autores como Temple Grandin em "O Cérebro Autista" e Uta Frith em "Autismo: Towards an Explanation of the Enigma". Essas obras destacam que o cérebro autista processa informações de maneira diferente, o que impacta diretamente a aprendizagem. Dificuldades na Teoria da Mente (compreender a perspectiva do outro), na função executiva (planejamento e organização) e no processamento sensorial (hiper ou hiposensibilidade a estímulos) são algumas das barreiras que podem surgir.


No campo pedagógico, autores como Maria Teresa Eglér Mantoan, em "Inclusão Escolar: O que é? Por quê? Como Fazer?", e Rossano Cabral Lima, em "Educação Inclusiva: Saberes, Práticas e Caminhos", argumentam que o maior obstáculo não está na criança, mas na rigidez do sistema. A alfabetização tradicional, centrada na audição e na reprodução de sons (método fônico), pode ser ineficaz para uma criança com desafios no processamento auditivo ou que é predominantemente visual, como muitas no espectro. 

Para Além da Escrita: A Polifonia da Expressão Autista 

Reduzir o letramento à escrita é subestimar a riqueza comunicativa das crianças autistas. Elas possuem uma "vocabulário" vastíssimo que opera em múltiplos canais: 

  • A Voz do Corpo: Movimentos estereotipados (stimming), como balançar ou bater as mãos, não são apenas autorregulatórios; podem ser expressões de alegria, ansiedade ou concentração. A educação física e a psicomotricidade, como aborda Le Boulch em "O Desenvolvimento Psicomotor do Nascimento até os 6 Anos", são ferramentas fundamentais para integrar corpo e aprendizagem. 


  • A Linguagem do Olhar: O contato visual direto pode ser aversivo, mas o olhar periférico é frequentemente aguçado. Uma criança pode não olhar nos olhos do professor, mas está absolutamente atenta ao movimento das letras no quadro. 


  • A Narrativa dos Gestos e da Imaginação: A brincadeira simbólica pode ser atípica, mas a imaginação é frequentemente vívida e concreta. Como descreve Olga Bogdashina em "Questões de Sensorialidade no Autismo e Síndrome de Asperger", a imaginação (pensamento por imagens) é uma forma poderosa de compreensão. Permitir que a criança desenhe, crie histórias com bonecos de forma não convencional ou use sua paixão por um assunto específico (hiperfoco) como ponte para a leitura é essencial. 


  • A Tecnologia como Voz: Tablets e softwares de Comunicação Alternativa e Aumentativa (CAA) não são muletas, são próteses de linguagem. Eles dão voz àqueles que são não-verbais ou minimamente verbais, permitindo que demonstrem compreensão e se expressem, redefinindo completamente o conceito de "estar alfabetizado". 


A Tríade de Apoio: Arte, Tecnologia e Natureza 

Esses três pilares oferecem caminhos alternativos e altamente eficazes para o letramento. 

  1. A Arte: A arte é uma linguagem universal. A música pode regular o sistema sensorial e auxiliar na memorização de sequências (como o alfabeto). As artes visuais permitem que a criança represente conceitos abstratos de forma concreta. O teatro e a dança, adaptados, trabalham a expressão corporal e a compreensão de emoções. 


  1. A Tecnologia: Aplicativos educativos interativos, que transformam letras em animações, ou jogos que recompensam a formação de palavras, aliam-se ao forte interesse visual e à tendência ao pensamento sistêmico de muitas crianças autistas. A realidade virtual, por exemplo, pode criar ambientes controlados para o treino de habilidades sociais em histórias. 


  1. A Natureza: O ambiente natural é uma sala de aula sensorial por excelência. Escrever na areia, contar pedras, formar letras com galhos ou simplesmente observar os padrões da natureza pode acalmar o sistema nervoso, reduzir a ansiedade e criar um estado mental propício para a aprendizagem. 


O Alicerce Afetivo: Pais, Brincadeiras, Amigos e Amor 

Nenhuma estratégia pedagógica floresce em solo árido. O papel da família é insubstituível. Os pais, como primeiros "decifradores" de seus filhos, são os arquitetos da autoestima da criança. Brincadeiras dirigidas e espontâneas, sem pressão por performance, são os contextos mais férteis para o desenvolvimento da linguagem e da interação. 

Os amigos, quando orientados pela mediação de um adulto, tornam-se os melhores professores de habilidades sociais. Um colega que explica uma regra de jogo, que compartilha um livro de histórias ou que simplesmente aceita uma forma diferente de brincar, é um agente de inclusão poderosíssimo. 

E, por fim, o amor. Não um amor piegas, mas um amor ativo, que se traduz em paciência, em presença, em aceitação incondicional. É o amor que dá segurança para a criança autista se arriscar, tentar, falhar e tentar novamente. É o que transforma o desafio da alfabetização em uma jornada compartilhada de descoberta de um mundo interno riquíssimo, que merece e precisa ser lido, ouvido e celebrado em todas as suas formas. 

Conclusão 

Alfabetizar e letrar uma criança autista é, antes de tudo, um exercício de escuta ampliada. É abandonar a ideia de que há apenas uma forma correta de aprender e se expressar. É mergulhar em um universo onde o corpo fala, o olhar percebe, a imaginação cria mundos e a tecnologia amplifica vozes. Ao integrar os saberes da neurociência, da biologia e da pedagogia com as ferramentas da arte, da tecnologia e da natureza, e ao construir sobre o alicerce sólido do afeto, da brincadeira e da amizade, é possível não apenas superar os desafios, mas revelar as potências singulares de cada criança, permitindo que cada uma escreva, à sua própria maneira, a história do seu lugar no mundo. 

 

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