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terça-feira, 4 de novembro de 2025

"Dark Money": A Guerra Secreta dos Bilionários pela Alma da América, Brasileira e mundial por Egidio Guerra

 


O livro "Dark Money: The Hidden History of the Billionaires Behind the Rise of the Radical Right" da jornalista investigativa Jane Mayer é uma obra fundamental para compreender as forças que têm remodelado a política e a sociedade norte-americana nas últimas décadas. Mais do que um simples livro de denúncia, é uma investigação meticulosa e aterradora que expõe os mecanismos de uma operação de longo prazo, financiada por uma elite de bilionários ultraconservadores, cujo objetivo final é desmontar o estado regulatório, destruir o conceito de bem-estar social e implantar uma versão radical do neo liberalismo. 

A Trama Secreta: Os Ideólogos e sua Estratégia 

Mayer identifica um grupo central de famílias e indivíduos – os irmãos Charles e David Koch, os Scaife, os Olin, os Bradleys e outros – que, movidos por uma ideologia radicalmente libertária cunhada por economistas como Friedrich Hayek e James McGill Buchanan, decidiram que a democracia representativa tradicional era um obstáculo aos seus interesses e visão de mundo. 

A sua estratégia, no entanto, não foi a de concorrer a cargos públicos, mas sim a de "investir" em ideias de forma sistemática e paciente, criando um ecossistema intelectual e político que pudesse, lentamente, dominar o debate público. A autora traça um "rastro bizantino" de bilhões de dólares doados através de fundações e entidades sem fins lucrativos (os "Dark Money", ou "dinheiro obscuro", que dá título ao livro) para: 

  1. Think Tanks (Fábricas de Ideias): Instituições como o Cato Institute, o American Enterprise Institute e a Heritage Foundation foram criadas ou financiadas massivamente para produzir pesquisas e narrativas que validassem políticas de desregulamentação, cortes de impostos para os muito ricos e o encolhimento do governo. 


  1. Captura Acadêmica: Doações generosas foram direcionadas a departamentos de Economia e Direito em universidades de elite (como a George Mason University) para formar gerações de estudantes na doutrina libertária e criar uma aparência de legitimidade intelectual para suas ideias. 


  1. Judiciário: O projeto Federalist Society, também financiado por essa rede, tornou-se uma máquina de seleção e promoção de juízes e juízas conservadores, culminando na composição atual da Suprema Corte, notavelmente favorável aos interesses corporativos. 


  1. Mídia e Máquina de Propaganda: Da fundação do Wall Street Journal editorialmente agressivo ao financiamento de veículos de mídia online e de rádio, a rede criou uma câmara de eco para amplificar suas mensagens e atacar a ciência e os fatos que a contradiziam. 

Destruindo a Democracia e Negando a Ciência 

O grande triunfo dessa operação, como detalha Mayer, foi sua habilidade em mascarar interesses econômicos extremamente específicos (a redução de impostos e regulamentações para grandes corporações) como uma cruzada ideológica pela "liberdade". Essa narrativa foi vendida ao público, muitas vezes contra seus próprios interesses econômicos. 

É neste contexto que surge o negacionismo climático. A ciência do clima, ao apontar para a necessidade de regulamentação de indústrias poluentes (como a petroquímica dos Koch), tornou-se o inimigo número um. A rede de "dark money" financiou e amplificou campanhas de desinformação, criando um falso debate na opinião pública e garantindo que mesmo as propostas mais modestas de combate às mudanças climáticas fossem derrotadas no Congresso. Essa estratégia de negar a realidade científica, quando aplicada a outras áreas como a saúde pública (vide o lobby contra o sistema de saúde universal), gera o negacionismo como fenômeno político: a substituição de evidências por narrativas convenientes. 

A Culminação na Era Trump 

Na nova prefácio do livro, Mayer argumenta que a vitória de Donald Trump em 2016 não foi um acidente, mas sim a colheita lógica de décadas de semeadura. A rede Koch, embora inicialmente cética em relação a Trump, viu nele o instrumento perfeito para implementar sua agenda: cortes de impostos históricos para os ricos, um desmonte sem precedentes de agências regulatórias e a nomeação de juízes alinhados com sua visão. 

Trump foi, portanto, tanto um sintoma quanto um catalisador. Ele personificou o cinismo e o desprezo pela verdade factual que a máquina de propaganda de direita havia normalizado. O populismo de fachada de Trump serviu para entregar o que a oligarquia sempre quis: poder e riqueza ainda mais concentrados. 

O Vídeo Alegórico: A Metáfora da Manipulação 

O vídeo de IA que mostra aviões jogando fezes sobre a maior manifestação da história americana feita por Trump é uma metáfora visual poderosa para o que Mayer descreve textualmente. A "merda" representa o dilúvio de desinformação, notícias falsas, teorias da conspiração e propaganda tóxica financiada pela rede de "dark money" e despejada diariamente sobre a população através de think tanks, mídias sociais e canais de notícias a cabo. Essa enxurrada de conteúdo, assim como o ataque no vídeo, tem o objetivo de: 

  • Confundir e paralisar o debate público. 

  • Sujar a imagem da ciência, da imprensa e das instituições democráticas. 

  • Dividir a sociedade para que ela não se una em torno de interesses comuns. 

  • Desmobilizar a resistência, fazendo as pessoas se sentirem impotentes diante de uma força tão avassaladora e nojenta. 

O Diálogo com Outras Obras 

A investigação de Mayer não está isolada. Ela ecoa e é ecoada por uma série de outros pensadores e autores que analisam a crise da democracia: 

  • Noam Chomsky: Em obras como "Manufacturing Consent", Chomsky já descrevia como as elites usam a mídia para fabricar o consenso. "Dark Money" fornece os nomes, os números e os mecanismos financeiros por trás dessa fabricação na era contemporânea. 


  • Bernie Sanders: O senador, em seu livro "Our Revolution", chega a conclusões similares, denunciando a "oligarquia" dos bilionários que compra eleições e corrompe o processo político. Sua retórica é o contra-ataquo político à máquina exposta por Mayer. 


  • Nancy MacLean: Em "Democracy in Chains", a historiadora faz um trabalho complementar, focando na figura intelectual de James McGill Buchanan e mostrando como a ideologia que sustenta todo esse projeto foi, desde o início, concebida para minar a democracia majoritária. 


  • Anne Applebaum: Em "O Crepúsculo da Democracia", Applebaum analisa como as elites abraçam o autoritarismo, um fenômeno que "Dark Money" ajuda a explicar do ponto de vista do financiamento e da infraestrutura ideológica. 

Conclusão 

"Dark Money" é mais do que um livro; é um alarme. Jane Mayer oferece ao leitor as chaves para decifrar o aparente caos da política moderna, revelando a arquitetura oculta de poder que o sustenta. Ela demonstra que a desigualdade extrema, a crise climática e a erosão da verdade não são acidentes, mas sim o resultado de um projeto deliberado, financiado e executado por uma fração ínfima da população. Entender "Dark Money" é o primeiro passo indispensável para se contrapor a essa força e, como o próprio livro conclui, lutar pelo futuro da democracia americana e, por extensão, de todas as democracias que enfrentam ameaças similares. 

 

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