SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 8 de abril de 2012

Como se fabrica a opinião pública - Pierre Bourdieu

Como se fabrica a opinião pública

por Pierre Bourdieu

Um homem oficial é um ventríloquo que fala em nome do Estado: assume uma atitude oficial – seria preciso descrever a encenação do personagem oficial -, fala a favor e em lugar do grupo ao qual se dirige, fala para e em lugar de todos, fala enquanto represent ante do universal.

Oficialidade, a má-fé coletiva
Uma das dimensões muito importantes da teatralização é a teatralização do interesse pelo interesse geral; é a teatralização da convicção do interesse pelo universal, do desinteresse do homem político – teatralização da fé no padre, da convição do homem político, de sua confiança naquilo que faz. Se a teatralização da convicção faz parte das condições tácitas do exercício da profissão de clérigo – se um professor de filosofia deve parecer acreditar na filosofia -, é porque é a homenagem fundamental do personagem oficial para com a autoridade; é aquilo que precisa conceder à autoridade para ser uma autoridade, para ser um verdadeiro personagem oficial. O desinteresse não é uma virtude secundária: é a virtude política de todos os mandatários. As escapadelas dos padres, os escândalos políticos são o colapso dessa espécie de fé política na qual todos estão de má-fé, a fé sendo uma espécie de má-fé coletiva, no sentido sartriano: um jogo no qual todos mentem a si mesmos e aos outros, sabendo que os outros também mentem a si mesmos. É essa a autoridade…

E nesse ponto chega-se à moderna noção de opinião pública. O que é essa opinião pública, invocada pelos criadores de direito das sociedades modernas, das sociedades nas quais o direito existe? É tacitamente a opinião de todos, da maioria ou daqueles que contam, daqueles que são dignos de ter uma opinião. Penso que a definição explícita, numa sociedade que se pretende democrática, ou seja, de que a opinião oficial é a opinião de todos, esconda uma definição latente, ou seja, que a opinião pública é a opinião daqueles que são dignos de ter uma opinião. Há uma espécie de definição censuária da opinião pública como opinião iluminada, opinião digna desse nome.

A lógica das comissões oficiais é aquela de criar um grupo capaz de dar todos os sinais externos, socialmente reconhecidos e reconhecíveis, de sua capacidade de expressar a opinião digna de ser expressada, e nas formas convenientes. Um dos critérios tácitos mais importantes na seleção dos membros de uma comissão, em particular de seu presidente, é a intuição, por parte de quem esteja encarregado da composição da comissão, de que a pessoa em questão conheça as regras tácitas do universo burocrático e as reconheça: em outras palavras, alguém que saiba jogar o jogo da comissão de maneira apropriada, aquela maneira que vai além das regras do jogo, que o legitima: nunca se está tanto dentro do jogo como quando se vai além. Em cada jogo, há regras e fair-play. A propósito do homem cabilo (N. do T.: berbere da Argélia), ou do mundo intelectual, eu tinha utilizado esta fórmula: a excelência, na maior parte das sociedades, é a arte de jogar com a regra do jogo, fazendo desse jogo com a regra do jogo uma homenagem suprema ao jogo. O transgressor controlado é a verdadeira antítese do herético.

O grupo dominante coopta os seus membros com base em indícios mínimos de comportamento, que são a arte de respeitar a regra do jogo até mesmo nas transgressões reguladas pela regra do jogo: as boas maneiras, o comportamento. É a célebre frase de Chamfort: “O ‘grande vigário’ pode sorrir de uma piadinha contra a religião, o bispo pode rir dela abertamente, o cardeal pode acrescentar-lhe algo de seu (1).” Mais subimos na hierarquia das excelências, mais podemos jogar com a regra do jogo, mas ‘ex officio’, a partir de uma posição tal que seja eliminada qualquer dúvida. O humor anticlerical de um cardeal é requintadamente clerical. A opinião pública é sempre uma espécie de realidade dupla. É aquilo que não se pode não invocar quando se quer legiferar em campos não organizados. Quando se diz: “Há um vazio jurídico” (expressão extraordinária), a propósito da eutanásia ou dos bebês-proveta, são convocadas pessoas que se colocarão a trabalhar com toda a sua autoridade. Dominique Memmi (2) descreve uma comissão de ética [sobre a procriação artificial], a sua composição com pessoas disparates – psicólogos, sociólogos, mulheres, feministas, arcebispos, rabinos, cientistas, etc. – que têm a tarefa de transformar uma soma de idioletos (3) éticos num discurso universal que preencherá um vazio jurídico, ou seja, – legalizar as mães portadoras, por exemplo. Quando se trabalha nesse tipo de situação, é necessário invocar uma opinião pública. Nesse contexto, compreende-se muito bem a função atribuída às sondagens. Dizer “as sondagens estão do nosso lado” é como dizer “Deus está conosco” em um outro contexto.

Mas a questão das sondagens é irritante, porque às vezes a opinião iluminada é contra a pena de morte, ao passo que as sondagens são predominantemente a favor. O que fazer? Faz-se uma comissão. A comissão constitui uma opinião pública iluminada que traduzirá a opinião iluminada em opinião legítima em nome da opinião pública – que, possivelmente, diz o contrário ou não tem nenhuma opinião formada a respeito (como acontece com muitos assuntos). Um das propriedades das sondagens consiste em colocar às pessoas problemas que elas mesmas não se põem, em sugerir respostas a problemas que elas mesmas não se colocam, portanto, em impor respostas. Não é questão de procurar caminhos transversos na constituição das amostras, é o fato de se impor a todos problemas que são sentidos pela opinião iluminada e, por essa via, de propor respostas gerais a problemas sentidos somente por alguns, portanto, de dar respostas iluminadas enquanto tiverem sido geradas com a pergunta: deu-se vida a problemas que não existiam para as pessoas, enquanto a pergunta era qual fosse o problema delas.

Vou lhes traduzir um texto de Alexander Mackinnon, de 1828, extraído de um livro de Peel sobre Herbert Spencer (4). Mackinnon define a opinião pública, dá a definição que seria oficial, se não fosse inconfessável numa sociedade democrática. Quando se fala de opinião pública, joga-se sempre um duplo jogo entre a definição confessável (a opinião de todos) e a opinião autorizada e eficiente que se obtém como subconjunto restrito da opinião pública democraticamente definida: “É a opinião, a propósito de um qualquer argumento de que se fale, expressa pelas pessoas mais informadas, mais inteligentes e mais morais da comunidade. Ela é gradualmente difundida e adotada por todas as pessoas dotadas de uma certa instrução e de um sentir adequado a um Estado civilizado”. A verdade dos dominantes se torna aquela de todos.

Colocar em cena a autoridade que autoriza a falar
Nos anos 1880, dizia-se abertamente à Assembleia Nacional aquilo que a sociologia precisou redescobrir, isto é, que o sistema educacional precisava expulsar os filhos das classes mais desfavorecidas. No início, a questão era colocada mas depois foi plenamente resolvida, à medida que o sistema escolar começou a fazer, sem solicitação explícita, aquilo que se esperava dele. Portanto, nenhuma necessidade de se falar a respeito. O interesse pela volta à gênese é muito importante porque, na fase inicial, podem ser recuperados debates em que são expressas com letras claras coisas que, em seguida, podem parecer provocações dos sociólogos.

O reprodutor da autoridade sabe produzir – no sentido etimológico do termo: produzir significa “trazer à luz”-, teatralizando-o, algo que não existe (no sentido de sensível, de visível), e no nome do qual se fala. Deve produzir em nome de quem tem o direito de produzir. Não pode não teatralizar, não dar forma, não fazer milagres. O milagre mais comum, para um criador verbal, é o milagre verbal, o sucesso retórico; deve produzir a encenação daquilo que autoriza o seu dizer, em outras palavras, da autoridade em nome da qual é autorizado a falar.

Reencontro a definição da prosopopeia que eu procurava antes: “Figura retórica pela qual se faz falar ou agir uma pessoa que é evocada, um ausente, um morto, um animal, uma coisa personificada”. E no dicionário, que é sempre um instrumento formidável, encontra-se esta frase de Baudelaire a respeito da poesia: “Manejar sapientemente uma língua, quer dizer praticar uma espécie de bruxaria evocadora”. Os clérigos, aqueles que manipulam uma língua sapiente como os juristas e os poetas, devem encenar o referente imaginário em nome do qual falam, e que falando produzem nas formas; devem fazer existir aquilo que exprimem e isso em nome do que se exprimem. Devem juntos produzir um discurso e produzir a confiança na universalidade do seu discurso através da produção sensível (no sentido de evocação dos espíritos, dos fantasmas – o Estado é um fantasma…) dessa coisa que será garante daquilo que fazem: “a nação”, “os trabalhadores”, “o povo”, “o segredo de Estado”, “a segurança nacional”, “a demanda social”, etc…

Percy Schramm mostrou como as cerimônias de consagração fossem a transferência, na ordem política, das cerimônias religiosas (5). Se o cerimonial religioso pode ser transferido assim facilmente para as cerimônias políticas, através das cerimônias da consagração, é porque se trata, em ambos os casos, de fazer acreditar que há um fundamento no discurso, o qual aparece auto-fundante, legítimo, universal só enquanto existir a teatralização – no sentido de evocação mágica, de bruxaria – do grupo unido e consonante com o discurso que o une. Daí o cerimonial jurídico. O historiador inglês E. P. Thompson insistiu no papel da teatralização jurídica no século XVIII inglês – as perucas, etc.-, que não pode ser compreendido completamente se não se vê que não se trata de um simples aparato, no sentido de Pascal, que viria a ser acrescentado: é parte constitutiva do ato jurídico (6). O falar forense em paletó e gravata é arriscado: arrisca-se perder a pompa do discurso. Fala-se sempre em reformar a linguagem jurídica, sem jamais fazê-lo, porque é o último indumento: os reis nus deixam de ser carismáticos

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