SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 13 de agosto de 2017

Chomsky ao vencedor , todas as batatas?


Em artigo no O POVO deste domingo (13), o Mestre em Filosofia, professor da UFC e sociólogo André Haguette diz que as gerações estão presas à mesmice que prevalece na política, única instituição que poderia controlar a concentração da riqueza e do capital da elite do poder em prol de uma nação mais coesa e até dos interesses burgueses. Confira:

Em entrevista a Mario Sérgio Conti, na Globo News, Noam Chomsky, um dos grandes mestres da linguística e crítico social, explicou que a razão fundamental do atraso da América Latina e, portanto, do Brasil foi “o fracasso de sua sociedade em controlar a concentração da riqueza e do capital da elite do poder e lidar com o radical problema da desigualdade”. Esse fracasso deixou a elite brasileira livre para moldar o País de acordo com seus interesses individuais e de classe. Desde os primórdios da Colônia, a elite dividiu o País e se descolou do resto da sociedade, praticando uma luta de classes aguerrida, não se preocupando em construir um país embasado na tríada burguesa de liberdade, igualdade e fraternidade.

Primeiro, com a casa-grande e a senzala e o massacre dos indígenas e, em seguida, pela montagem de instituições que lhe são favoráveis: latifúndio, escola para seus filhos, medicina privada, bairros residenciais segregados e condomínios fechados, transporte individual pelo caro, impunidade etc. Dessa forma, suas necessidades atendidas, ela nunca se dedicou a resolver os problemas da escola, saúde, habitação e do transporte públicos, deixando uma legião de homens livres numa ordem capitalista à sua própria sorte, mas a seu serviço e sob sua dependência.

A elite do poder fez mais: sequestrou o Estado para si, tratando-o como extensão de seu patrimônio, apropriando-se de suas terras, de seu erário e de seu poder. A elite econômica vive pendurada em subsídios estatais como os do BNDES e de outros bancos de fomento; em pesquisas e inovações financiadas pelo poder público; em conluios com o aparelho público; em benesses fiscais, judiciais e prisionais; em um sistema tributário regressivo etc. Nos últimos anos, os subsídios recebidos pelas indústrias equivalem a 77 vezes o montante investido no Bolsa Família, sem falar da corrupção e da remessa de bilhões em paraísos fiscais, recursos subtraídos do desenvolvimento interno. As elites políticas continuam dividindo o País com a multiplicação calculista e obscena dos partidos políticos, a exorbitância do financiamento de seu pífio funcionamento, seus conluios com a iniciativa privada, suas campanhas eleitorais corruptas e corruptoras, sua benevolência com os crimes de colarinho branco, suas negociações de votos em troca de emendas parlamentares e cargos e, sobretudo, sua incapacidade de aprovar leis, institutos e instituições visando ao bem geral. Que dizer das elites sindicais com seu apetite pelo imposto sindical e o peleguismo; do Poder Judiciário com suas regalias de nobreza, incluindo um odioso auxílio-moradia e das elites acadêmicas dissociadas do ensino básico público? O público, às favas!

À maior parte da sociedade, bestializada, resta o conformismo ou a violência na espera de uma nova maneira de fazer política, que poderia ter resultado da promessa que representou pelo PT, mas que foi traída.

Daí uma fatiga trágica em ver que gerações passam e a mesmice prevalece na política, única instituição que poderia controlar a concentração da riqueza e do capital da elite do poder em prol de uma nação mais coesa e até dos interesses burgueses.


Noam Chomsky chegou ao café, nas Perdizes, com três tons de azul –no tênis, na camisa, na jaqueta. Estava bem melhor da gripe que pegara em Montevidéu. "Fui a um churrasco ao ar livre e fazia um frio horrível, receita certa para ficar doente", explicou.

Contou que conversara com o ex-presidente Mujica, "um dos poucos políticos honestos hoje". Perguntou de Lula, lamentou a destituição de Dilma ("o PT perdeu uma enorme oportunidade") e elogiou o ex-chanceler Celso Amorim. Tomou expresso e comeu pão de queijo.

No café e na GloboNews, um fluxo contínuo de jovens veio lhe pedir autógrafo e selfies. Uns admiravam o linguista que virou a disciplina do avesso. Outros, o crítico radical do imperialismo. Chomsky é o intelectual americano mais conhecido no mundo.

Ele se lembra de, criança, ter escutado Hitler no rádio. Não entendeu o sentido do que dizia, mas captou-lhe a dicção violenta e o seu efeito sobre a multidão fanática. O primeiro artigo que publicou, no jornal da escola, lastimava a queda da Barcelona diante dos fascistas. Tinha dez anos.

A revolução começou com "Estruturas Sintáticas", lançado há 70 anos com a frase memorável: "colorless green ideas sleep furiously", ideias verdes sem cor dormem furiosamente. O sentido é nulo, mas a gramática existe. Ou seja, a sintaxe independe da semântica; a forma, do conteúdo.

Chomsky, grosso modo, postulou a existência de uma linguagem interna, usada para pensar, da qual decorreria outra, externa, mero meio de comunicação. Ambas se fundariam num sistema biológico inato, a gramática universal. Pensamos, logo existimos.

Além de cartesiano, Chomsky foi influenciado por linguistas medievais. Eles presumiram uma língua divina primordial, perdida quando da presunçosa tentativa humana alcançar o paraíso –fazer a Torre de Babel. Algo da estrutura da língua adâmica existiria na gramática universal.

Ocorre que o pensamento de Chomsky não tem brumas místicas. Ali onde a linguagem e a política se encontram, ele foi marcado, isso sim, pela clareza materialista de George Orwell. O primeiro livro que leu dele, "Homenagem à Catalunha", levou-o ao anarco-sindicalismo.

O anarquismo é evidente na sua política. Chomsky combate os estados, a começar pelos Estados Unidos. Preza a luta espontânea dos fracos contra a autoridade da força. Acha que comunidades sem hierarquia podem gerar liberdade. Como na Barcelona insurgente de Orwell.

Na linguística, algo dessas concepções está presente, ainda que indiretamente. Ele defendeu que as crianças não aprendem a língua materna, e sim a "adquirem". Com um mínimo de estímulos, logo chegam a complexidades altamente sofisticadas. Têm em si a gramática universal.

Caberia aos linguistas, pois, facilitar a aquisição da língua. Para incentivar e tornar perene a criatividade infantil, diminuindo assim a distância entre a competência universal e a performance individual –um projeto que talvez se inspire no anarquismo.

Veio, então, a pergunta fatal: o que acha do Brasil? "É ótimo o país que produz uma maravilha como essa", respondeu. Deliciado, apontou Valéria, a brasileira com quem se casou há pouco.

Chomsky falou a sério: eles se olham nos olhos, andam de mãos dadas, cuidam um do outro. Ouvem música clássica e assistem juntos a filmes de Woody Allen. Estão de mudança de Massachusetts para o Arizona.

Valéria apresentou Machado de Assis ao marido, que adorou seus romances. Sorrindo, citou "Quincas Borba": "To the winner, the potatoes".
Chomsky tem 88 anos. Publicou dezenas de livros, tem três filhos, cinco netos e um bisneto. Mais que as glórias passadas, vale o aqui e agora: trabalha todos os dias; é criativo e curioso; viaja o mundo vergastando os poderosos e é ouvido pelos jovens; ama e é amado.

Ao vencedor, as batatas. 

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