Nosso romance na literatura, no cinema, nas viagens e no mar por Egidio Guerra.
O ar em Nápoles era espesso, um caldo de suor, medo e peixe podre. Eu, Martin, sobrevivia nele como um rato, com os nós dos dedos calejados da rede e o espírito faminto de um cão de rua. Minha vida era uma sucessão de dias cinzentos, tingidos pela fúria contida dos "meninos" de Saviano, pela violência sussurrada que governava as vielas. E então, eu a vi.
Ela não pertencia àquele mundo. Chamavam-na de Ártemisia. Seu vestido era simples, mas carregava uma elegância que gritava de outra esfera, uma classe superior que eu só conhecia através de vidros sujos de cafés e restaurantes caros que ela frequentava. Seus cabelos eram como mistérios dançando sobre o vento e sol italiano, e seus olhos – oh, seus olhos eram como os do retrato de Modigliani que eu vira uma vez num livro roubado no Museu do Amanhã: amendoados, profundos, carregados de uma melancolia e uma fortaleza que me perfuraram a alma.
Nosso encontro foi um acidente, depois de décadas, uma colisão de galáxias inconciliáveis. Eu, fugindo de uma revolta contra corruptos e seus capangas locais, esbarrei nela na Praça do Mercado, derrubando suas compras. Ao me curvar para ajudá-la, nossas mãos se tocaram. Foi como um choque, uma centelha que percorreu a sujeira sob minhas unhas e atingiu o cerne do meu ser. Ela não recuou. Fitou-me, e naquele olhar, eu li não o nojo que esperava, mas uma curiosidade intensa, quase perigosa.
"Você tem pressa," disse ela, a voz um contralto suave que cortou o burburinho da rua.
"A vida aqui é pressa, senhora," respondi, meu coração um tambor furioso no peito.
Assim começou o nosso impossível. Artemisia, eu descobri, não era apenas uma flor exótica no lodo; ela era uma revolucionária, uma idealista que, como os líderes de "Jogos Vorazes", desafiara sua própria casta. Seu palácio era uma gaiola de ouro, e ela escolhera a jaula da rua, acreditando que poderia mudar o tecido podre da nossa sociedade, uma sociedade à beira do abismo como na França de "Noventa e Três" de Victor Hugo. Ela distribuía panfletos, organizava reuniões secretas, sonhava com um mundo sem as guilhotinas invisíveis que decapitavam os sonhos dos pobres.
Eu, fogo puro, o letrado pelas ruas, tornei-me seu soldado, seu guarda-costas, seu aluno apaixonado. Ela me ensinou sobre política, sobre liberdade, sobre o poder das palavras. Eu a ensinei sobre a rua, sobre a linguagem do perigo, sobre como sobreviver. Nos escondíamos nos becos mais sombrios, nosso amor proibido florescendo na escuridão, alimentado pela adrenalina do perigo e pela promessa de um amanhã diferente. Éramos Romeu e Julieta em meio a uma guerra civil não declarada, nosso romance uma balada de rock Green Day: cheio de raiva, desejo e uma desesperada esperança.
As aventuras eram maravilhosas e terríveis. Perseguições sob a chuva, mensagens passadas sob o nariz de guardas corruptos, noites inteiras debatendo o futuro da humanidade em velhos armazéns abandonados, nossos corpos se encontrando depois, com a urgência de quem sabe que o amanhã é uma moeda ao ar. Foi veloz e belo, como os amores retratados em Em busca da Terra do Nunca.
Mas o navio da nossa vida não navegava em mares calmos. A violência da cidade, a traição, a implacável máquina da desigualdade esmagou nosso idílio. Artemisia foi descoberta. A família dela, poderosos comerciantes ligados à camarilha no poder, a sequestrou da rua. Um dos seus, um rival político ciumento que cobiçava seu lugar de liderança, traiu-nos. Fui capturado, torturado, deixado como morto numa praia suja, acreditando tê-la perdido para sempre. O naufrágio era completo. Como os homens do Wager, eu era um sobrevivente, mas a minha alma estava à deriva, consumida pelo sal amargo da perda.
Anos se passaram. A revolução que ela pregava eclodiu, mudou rostos no poder, mas a essência da luta permaneceu. Eu me tornei um homem diferente, mais duro, um líder por acidente, minhas cicatrizes eram meu currículo. A vida, num daqueles caprichos impossíveis que só a ficção e a realidade mais crua permitem, colocou-me a bordo de um navio de carga, um antigo veleiro adaptado, que cruzava o Mediterrâneo contrabandeando esperança e armas.
Num porto no norte da África, sob um céu cor de laranja-sangue, o capitão chamou-me ao convés. Havia um emissário a bordo, alguém que financiava nossa operação, uma figura misteriosa por trás da nova resistência. E quando a figura se virou, o tempo parou.
Era Artemisia.
Mas não era a Artemisia que eu lembrava. Seus olhos de Modigliani agora tinham a profundidade de todos os oceanos que nos separaram. Havia novas linhas em seu rosto, mapas de mil turbulências. Seu vestido era simples, como da primeira vez, mas a autoridade que emanava era a de uma general. Ela sobrevivera. Fora enviada para um convento, depois para o exílio, e, por fim, usando sua inteligência e nome, infiltrou-se no coração da besta, subvertendo o poder de dentro para fora.
Francisco e Clara nos dias atuais. Nosso reencontro não foi de correria e lágrimas dramáticas. Foi um silêncio pesado, carregado de toda a dor e todo o amor que não morrera. O navio balançava suavemente, uma embarcação de loucos e sonhadores, assim como nós.
"Martin," disse ela, meu nome saindo de seus lábios como uma oração perdida e reencontrada.
"Artemisia," respondi, minha voz rouca da emoção contida.
Ela estendeu a mão, e eu a tomei. Não era mais o toque de um menino de rua e uma dama. Era o toque de dois náufragos que, depois de terem sido engolidos pelo mesmo mar tempestuoso, encontraram-se na mesma praia, reconhecendo as mesmas cicatrizes nas suas almas. O impossível havia acontecido. O navio da vida nos levara ao fundo do abismo e nos cuspira de volta, diferentes, quebrados, mas vivos. E o amor, aquele sentimento brutal e belo que nos unira na escuridão, ainda ardia, não mais como uma fogueira juvenil, mas como o sol constante que guia os navios após a tempestade. A aventura não tinha terminado. Estava apenas recomeçando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário