SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

O Nordeste Brasileiro: A Fortaleza da Desigualdade por Egidio Guerra.

 


A história da desigualdade no Nordeste brasileiro não é um acidente geográfico ou uma falha de caráter regional. É uma construção histórica, um projeto de poder que remonta aos alicerces da colonização. Em "Casa Grande & Senzala", Gilberto Freyre nos mostra como a sociedade brasileira se ergueu sobre um dualismo perverso: de um lado, a casa-grande, símbolo do poder oligárquico e da concentração de renda e terra; de outro, a senzala, representação da submissão, da exploração e da negação de direitos. Essa estrutura, longe de ter sido superada, se reconfigurou ao longo dos séculos. 



Raymundo Faoro, em "Os Donos do Poder", argumenta que o Estado brasileiro nunca foi um ente público e impessoal, mas um patrimônio de uma "classe de negócios públicos", uma burocracia entrelaçada com as elites econômicas. No Nordeste, esse fenômeno é particularmente visível. A elite cearense, brilhantemente retratada por Jader de Carvalho em "Aldeota", consolidou seu poder não apenas na lavoura, mas no controle da política, dos meios de comunicação e das instituições financeiras. Como demonstra Liduína Almeida em "O Sertão Não Virou Mar", os projetos de desenvolvimento para a região, muitas vezes, serviram mais para irrigar os bolsos destes poucos do que para saciar a sede de justiça social da maioria. 

A Desigualdade Contemporânea: Bilionários e Incentivos Fiscais versus Pobreza e Violência 

O Ceará é um microcosmo dessa dramática distorção. Enquanto o estado possui um dos maiores números de bilionários do país, fruto de conglomerados familiares herdados e ampliados, convive com taxas de pobreza e violência que estão entre as mais altas da federação. Essa contradição escancara a falácia do "desenvolvimento" que não distribui riqueza. 



Grandes grupos empresariais cearenses recebem volumosos incentivos fiscais, argumentando a geração de empregos e o crescimento econômico. No entanto, como demonstram Marcelo Medeiros em "Os Ricos e os Pobres" e Bruno Carazza em "O País dos Privilégios", a concentração de renda no Brasil é extrema, e o 1% mais rico não é parte da solução, mas o cerne do problema. Esse 1% detém uma parcela desproporcional da riqueza nacional, muito dela aplicada em títulos da dívida pública – um mecanismo pelo qual o Estado, ironicamente, transfere renda dos pobres (via impostos) para os mais ricos (via juros), perpetuando o ciclo de privilégios que Faoro identificou. 


Nesse contexto, instrumentos criados para promover o desenvolvimento, como o Fundo Constitucional do Nordeste (FNE) do Banco do Nordeste , veem sua eficácia severamente limitada. O FNE, embora volumoso, opera em um ambiente de taxas de juros historicamente altas no Brasil – uma política que, como aponta Carazza, beneficia detentores de títulos públicos. Além disso, o crédito frequentemente é capturado por grandes players do agronegócio ou por empresas de médio porte já consolidadas, em detrimento de pequenos empreendedores e agricultores familiares. O oligopólio bancário, por sua vez, dificulta o acesso ao crédito barato, estrangulando as oportunidades reais de ascensão econômica. 

O Estado como Mecanismo de Perpetuação 

A obra de Daniel Guérin, " Fascismo e Grande Capital", embora analise contextos específicos, nos alerta para uma verdade universal: quando o Estado se alia incondicionalmente aos interesses do grande capital, as desigualdades se aprofundam e os mecanismos democráticos são corroídos. No Brasil, o Estado tem sido, historicamente, um agente ativo na manutenção dos privilégios, conformando uma "nobreza" moderna, como bem descreve Carazza. 


Isso se reflete no acesso à educação. A falta crônica de creches públicas de qualidade condena milhares de mulheres pobres à dupla jornada exaustiva ou à impossibilidade de trabalhar, enquanto perpetua ciclos de pobreza infantil. O ensino superior, por sua vez, mesmo com cotas, permanece um território majoritariamente das classes média e alta, uma vez que a educação básica pública é desvalorizada e sucateada, não preparando os jovens para competir em igualdade de condições. 


As Consequências e os Perigos Futuros 

Walter Scheidel, em "A Violência e a História da Desigualdade", apresenta a tese sombria de que, historicamente, apenas quatro "Cavaleiros do Apocalipse" – guerra revolucionária, colapso estatal, pandemias e guerras massivas – foram capazes de reduzir drasticamente a desigualdade. A violência urbana no Ceará, com seus alarmantes índices de assassinatos, pode ser lida como uma manifestação catastrófica dessa desigualdade extrema, uma guerra não declarada que ceifa vidas majoritariamente jovens, negras e pobres. 


Os perigos que nos cercam são multifacetados. A destruição da democracia e do Estado de Direito, como temos testemunhado, ameaça desmontar as já frágeis políticas públicas. O fim da previdência social condenaria idosos à miséria. Crises climáticas, como as secas no Nordeste, agravam a fome e a migração forçada. A revolução da Inteligência Artificial e da robótica, sem políticas de redistribuição, pode aprofundar a exclusão social em níveis inéditos, criando um mundo de "desempregados estruturais", como já antevê Thomas Piketty. 



Caminhos para a Ruptura: Das Teorias às Soluções 

Thomas Piketty, em "O Capital no Século XXI", demonstra que a taxa de retorno do capital tende a ser maior que o crescimento econômico, o que naturalmente concentra riqueza. Para combater essa tendência secular, é necessária intervenção estatal robusta. Eve Buckley, em "Tecnocratas", mostra como projetos de desenvolvimento no Nordeste foram frequentemente guiados por uma lógica técnica e excludente. Precisamos de uma nova lógica, centrada na equidade. 

As soluções passam, necessariamente, por: 

  1. Tributação Progressiva: Taxar grandes fortunas, heranças e lucros e dividendos, seguindo a agenda de Piketty. 

  1. Renda Básica Universal ou Renda Mínima: Garantir um piso de dignidade para todos, rompendo o ciclo intergeracional da pobreza. 

  1. Reforma Agrária e Apoio à Agricultura Familiar: Desconcentrar a terra, o principal ativo histórico de poder na região. 

  1. Democratização do Crédito: Direcionar fundos como o FNE para pequenas e médias empresas, cooperativas e empreendedores individuais, com juros baixos. 

  1. Investimento Massivo em Educação Pública: Da creche à universidade, com qualidade e infraestrutura, como antídoto de longo prazo contra a desigualdade. 


A história do Nordeste, como a do Brasil, é a história de uma desigualdade persistentemente cultivada. Romper com esse legado exige mais do que reformas técnicas; exige uma correlação de forças política que enfrente os "donos do poder" e redirecione o Estado, transformando-o de um patrimônio de privilégios em um instrumento de emancipação e justiça para todos. O futuro da democracia e da coesão social depende dessa escolha. 




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