SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sábado, 30 de abril de 2022

As raízes cabalísticas do conceito de Negatividade.

 


por J. C. Marçal*


RESUMO:O objetivo deste artigo é discutir o conceito de Negatividade assim como o mesmo aparece na tradição cabalística judaica, mas especificamente no texto do Sêfer Ietsirá. Este conceito é fundamental para se entender a ideia da negatividade de Deus ou do Uno em pensadores como Filon de Alexandria, Plotino, Proclo, Dionisius e Mestre Eckhart.


PALAVRAS CHAVES: Deus, Negatividade, Cabala.


A Cabala representa a suma judaica1. Trata-se de uma tradição judaica – que no decorrer dos séculos adentra a esfera do misticismo cristão e islâmico - que se debruça sobre as coisas divinas. Esta tradição caminha lado a lado com a Bíblia e funciona como “uma tradição destinada a capacitar certa classe de iniciados a explicar e compreender a Lei (Thorah)”2. Em termos da dogmática místico-filosófica da Cabala, esta pode ser estruturada a partir de duas obras essenciais: o Sêfer Ietsirá e o Zohar. As especulações místicas nesta área se dividem na obra do carro (maase mercaba – o Zohar) e na obra da criação (maasse bereschit – o Sêfer Ietsirá)3. O Sêfer Ietsirá trata da obra da criação estruturando uma diferença entre o Deus não manifesto entendido como pura negatividade, o Ain-Sof Or (rwa ws wya), e o mundo manifesto, ou seja, as dez Sephiroth e os vinte e dois caminhos da Árvore da Vida ( ). O Zohar, por seu turno, “é um comentário cabalístico do Pentateuco”4.


* Professor Doutor em Filosofia pela UFPE. Professor da Faculdade Joaquim Nabuco. E-mail: introitu@hotmail.com.


O Sêfer Ietsirá – texto provavelmente construído no século I d.C.5 – constitui uma das fontes principais para se entender a filosofia e a dogmática mística da Cabala. Entretanto, há uma controvérsia sobre a origem do conhecimento e da própria tradição cabalística. Adolphe Franck, por exemplo, sustenta a tese de que os principais conteúdos das doutrinas cabalísticas foram tomados emprestados dos teólogos persas6. Scholem cita a teoria de F. A Tholuk (Commentatio de vi, quam graeca philosophia in theologia Tum Muhammedanorum tum Judaeorum exercuerit. II. Particula: De ortu Cabbalae) que afirma que a Cabala é historicamente dependente do Sufismo Mulçumano7. Scholem, porém, acredita que estas teses não devem ser levadas academicamente a sério. Scholem parte da análise das teorias de Graetz e Neumark para delimitar a origem da Cabala. Para Graetz, a Cabala surge como uma resposta contra o racionalismo radical de Maimônides8. Neumark, ao contrário, assinala uma data anterior e propõe que a Cabala na verdade se trata de um desenvolvimento filosófico e místico do próprio judaísmo9.


Scholem defende a teoria de que a Cabala “como um fenômeno histórico no judaísmo medieval”10, nasceu em Provença, e mais ainda na parte ocidental, ou seja, em Languedoc. Todavia, o próprio Scholem reconhece a impossibilidade de datarmos acertadamente o Sêfer Ietsirá e cita um manuscrito do século dez do texto que não pode ser tomado como original, mas apenas como indicação da existência mais tardia desta mesma tradição11. É nesta direção que Kaplan pode afirmar a antiguidade do texto.


Os estudiosos da Cabala – independente desta controvérsia - afirmam que há três divisões categorias para a mesma: teórica, meditativa e mágica. A primeira divisão trata da dinâmica espiritual e se concentra, basicamente, no Zohar12. Neste tratado temos a análise cabalística para o mundo fenomênico – as dez Sephiroth13 – a estrutura da alma e dos anjos. A segunda categoria trata do uso dos nomes divinos através de meditação e que traz em seu lastro a maioria dos textos publicados sobre Cabala. A terceira categoria está estritamente ligada à segunda. Trata-se do uso de “sinais, encantamentos e nomes Divinos através dos quais se poderá influenciar ou alterar os eventos naturais”14.


Neste sentido, o Sêfer Ietsirá – de acordo com a tradição talmúdica – seria um texto meditativo. Entretanto, a despeito de sua essência prática, o texto possui como base uma metafísica própria necessária à compreensão da prática meditativa. Esta metafísica é a base mesma da estrutura filosófica da Cabala. Há, então, duas esferas de articulação: uma esfera que a linguagem representacional não alcança, já que sua natureza é de pura negatividade e outra cuja linguagem se debruça por um processo de surgimento desta esfera anterior. Em termos filosóficos, poderíamos estabelecer uma analogia com a esfera ontológica e a esfera ôntica.


Em termos cabalísticos do próprio Sêfer Ietsirá, como lemos no Capítulo 1, Deus (Yah) gravou com “32 caminhos místicos de Sabedoria” a estrutura de seu universo a fim de criá-lo. O verbo gravar (Chacac, qqh)) tem “usualmente a conotação de remover material”15. Mas este verbo só pode ser devidamente compreendido nesta fórmula quando possuímos a ideia exata de criação dada. 


Isto significa:

Antes de o universo ser criado, existia um espaço vazio no qual ele pudesse ser feito. Mas, inicialmente, só Deus existia, e toda a existência estava cheia da Essência Divina, a Luz do Infinito (Or Ên Sof). Nesta Essência indiferenciada, um espaço vago teve que ser gravado. O processo, conhecido pelos cabalistas como o TsimTsum (Constrição)16, está claramente descrito no Zohar: No princípio da autoridade do rei/ A Lâmpada da escuridão/ Gravou um

13 As dez Sephiroth (xwiiyps) – Sephirah (hriiyps) no singular - respondem pela estrutura manifesta de Deus a partir da negatividade, Ain-Sof Or (rwa ws wya) . Esta estrutura recebe o nome de Árvore da Vida (Etz Hachayym - como em Gênesis 2:9) – dez centros e vinte e dois caminhos (as 22 letras hebraicas) que os interligam. Segundo Fortune: “Cada Sephirah (forma singular do substantivo plural Sephiroth) representa uma fase de evolução e, na linguagem dos rabinos, as Dez Esferas recebem o nome das Dez Emanações Sagradas. Os Caminhos entre elas são fases da consciência subjetiva, os Caminhos ou graus [...] através dos quais a alma desenvolve a sua compreensão do cosmo. As Sephiroth são objetivas; os Caminhos são subjetivos”.


O vazio gravado na Luminescência Divina foi o espaço Vago, no qual toda a Criação subsequentemente ocorreu17.


Os cabalistas usam dois termos para falar deste espaço conceitual vazio que contém a possibilidade para a informação: o Caos (Tohu) e o Vazio (Bohu)18. Isto é retirado do próprio relato do Gênese 1:2 onde lemos que a terra antes era caos e vazio. O Caos é onde há a possibilidade da informação existir, mas “no qual esta possibilidade ainda não foi realizada”19 – os cabalistas determinam esta região como o Espaço Vago onde primeiro temos o uso do verbo “gravar” para depois surgir o verbo “criar”. A distinção aqui dada é importante: o Espaço Vago permite que o manifesto – os fenômenos – surjam. O mundo manifesto, fenomênico, é entendido na Cabala como a Árvore da Vida com suas dez Sephiroth e seus vinte e dois caminhos. As Sephiroth abrangem o mundo dos atributos divinos. Entretanto, para os místicos, as Sephiroth são a própria vida divina na medida em que esta se move em direção à Criação. Mesmo que possamos pensar numa diferença ontológica dada aqui pela própria Divindade em si e as Sephiroth, devemos entender que para os cabalistas esta vida não estava apartada da própria Divindade:


Mas essa vida não é separada da Divindade, nem lhe é subordinada, mas é, antes, a revelação da raiz oculta, a respeito da qual nada pode ser dito, nem mesmo através de símbolos, já que ela nunca é manifestada, raiz essa que os cabalistas chamam en-sof, o infinito. Mas esta raiz oculta e as emanações divinas são uma só coisa20.

É do Espaço Vago que advém aquilo que é enquanto fenômeno. No versículo 1:2 do Sêfer Ietsirá lemos: “Dez Sefirot do nada”21.


As Sephiroth, as emanações que manifestam mundo e que advêm da pura negatividade, Ain-Sof Or, originam-se do nada. Para falar do nada o Sêfer Ietsirá usa a palavra Beli-ma (hmylb) que pode também ser traduzida por absoluto, inefável, abstrato, fechado. De modo conciso, temos:


Esta palavra aparece uma só vez na Escritura, no versículo: “Ele estende o norte sobre o Caos, pendura a terra sobre um nada (Beli-ma)” (Jó 26:7). Segundo muitos comentários, a palavra Beli-ma deriva de duas palavras, Beli, que significa “sem”, e “Ma”, que significa “o que” ou “algo”. A palavra Beli-ma viria então a significar “sem absolutamente nada” ou “nada”22.


Todavia, o conceito de Beli-ma não deve ser apressadamente associado ao conceito de Deus. Na valoração cabalística para Beli-ma – o valor numérico que cada letra hebraica possui somado na palavra – teríamos a soma 87, enquanto que em relação ao nome divino Elohim teríamos a soma 86; o número anterior. Deste modo, os cabalistas parecem entender que Beli-ma se trata na verdade de um estágio posterior à pura essência do Divino. É este caráter incognoscível desta essência – sua compreensão – que permite a distinção entre a negatividade e o manifesto.


Porém, no solo próprio em que os conceitos da negatividade e do nada se articulam, parece haver uma co-pertença entre ambos, uma dinâmica muito própria – se é possível falar assim sobre o que é incognoscível – que é o fundamento daquilo que existe. Na dimensão própria do manifesto, os cabalistas se referem a Kether (rtk), a primeira Sephirah, como a Causa, enquanto que Malkuth (tiwblj), a última Sephirah, seria o Efeito. Mas como a Causa não pode existir sem o Efeito, há uma interdependência entre estas duas Sephiroth. Assim, em termos cabalísticos: “Como Causa não pode existir sem Efeito, o Efeito é também a causa da Causa. Neste sentido, o Efeito é a causa e a Causa é o efeito. Já que princípio e fim são inseparáveis, ‘seu fim está contido em seu princípio e seu princípio em seu fim’”23.


Entretanto, a Cabala não quer conquistar com isso uma definição do que possa ser Deus. Deus, para a Cabala, não pode ser entendido como causa, uma vez que a causa é, em algum grau, dependente de seu efeito. A causa é uma criação e, portanto, posterior a Deus e Este, em si mesmo, não depende de Seu efeito. Coloca-se, então, uma questão problemática sobre Deus e a Criação. 


Primeiramente devemos entender que para a Cabala – especialmente em seu sentido mais prático de aproximação com o Divino – todo e qualquer conhecimento religioso de Deus só pode ser obtido através “da contemplação do relacionamento de Deus com a criação”24. Faz-se necessário, portanto, estabelecer minimamente a possibilidade de entendermos não a Divindade em sua essência, mas sim o limite imposto entre aquilo que pensamos entender e o que não está sujeito a tal apreensão. Esta distinção é fundamental se quisermos tornar claro o que a Cabala pensa sobre Deus e sua negatividade. Em sua essencialidade divina, Deus não pode ser compreendido, ou seja:


Deus em Si, a Essência absoluta, está além de qualquer compreensão especulativa ou mesmo extática. A atitude da Cabala para com Deus pode ser definida como um agnosticismo místico, formulado de uma maneira mais ou menos extremada e perto da posição do neoplatonismo. A fim de expressar este irreconhecível aspecto do Divino os antigos cabalistas da Provença e da Espanha cunharam o termo Ain-Sof (“Infinito”). Esta expressão não pode ser remontada a uma tradução de um termo filosófico em latim ou árabe. É, antes, uma hipostatização que, em contextos que lidam com a infinitude de Deus ou com Seu pensamento que “se estende sem fim” (le-ein sof ou ad le-ein sof), trata a relação adverbial como se fosse um nome e a usa como um termo técnico25.


Scholem afirma que o termo Ain-Sof não remonta a uma tradição filosófica exterior à tradição judaica. Ele tem em mente a tese de David Ginsburg onde o termo é uma derivação e imitação do termo grego Apeiros (A2peirov) e, mais ainda, o sentido dado ao Ain-Sof – superior ao conhecimento, pensamento e ao ser atuais – é de origem neoplatônica26. O equívoco de Ginsburg, segundo Scholem, é entender que o documento mais antigo da tradição cabalística refere-se ao catecismo neoplatônico sobre as Sephiroth elaborado por Azriel que era discípulo de Isaac que em seus trabalhos já cita o Bahir como uma das bases para suas doutrinas cabalísticas. Para Scholem é possível falar em certos momentos em que o conceito de Ain-Sof trafega por influências neoplatônicas, mas jamais se pode afirmar que este trânsito delimita o todo

do conceito. A questão, posta por Scholem, e que é derivada deste contexto, é: em que termos podemos entender a origem do conceito Ain-Sof? Ele explica:


Ele (o conceito) não resulta de uma tradução deliberada, mas de uma interpretação mística dos textos que contém a composição do termo ́en-sof num sentido perfeitamente adverbial, e não como um conceito específico. A doutrina de Saadya Gaon, em particular, abunda em afirmações sobre a infinitude de Deus [...] Tobias bem Eliezer, que escreveu por volta de 1097, também acentua precisamente esta qualidade de Deus no contexto de uma referência aos escritos místicos de Hekhaloth27.


Neste sentido, parece plausível afirmar que Scholem corrobora a tese de Kaplan sobre a antiguidade das origens desta tradição. A negatividade não surge em sentido derivado, mas como um conceito muito próprio, já que responde por uma interpretação mística dos textos e, em especial, da própria Bíblia – o Velho Testamento.


Ain-Sof é a perfeição absoluta e há, mesmo nesta “definição”, a manutenção deste “mistério” que envolve Deus. Pode-se falar, em termos didáticos, de uma “causa infinita” – o que, para bem da verdade, não diz absolutamente nada, já que os cabalistas entendem que na negatividade nem mesmo há vontade. A direção apontada aqui é a de que com referência à negatividade Divina o pensamento não pode atingir uma compreensão. Trata-se de uma “luz” escondida28, de uma superfluidade (provavelmente uma tradução para o termo neoplatônico hyperousia)29.


Por mais díspares que sejam os termos dados pelos cabalistas, devemos entender que eles não estão atrás de uma conceituação do termo. Ao contrário, querem apenas indicar que Ain-Sof e “seus sinônimos estão acima ou além do pensamento”30. Isto é possível de entender quando a Cabala fala do ocultamento de Deus. Mesmo as especulações acerca de uma possível diferença entre o Deus oculto e o Deus manifesto não é legítima para esta tradição, já que a Criação possibilita, em si mesma, que a objetivo deste processo no Ain-Sof. Scholem entende que explicações desta natureza possuem função meramente simbólica e acrescenta:


A decisão de sair do ocultamento para a manifestação e criação não é em nenhum sentido um processo que é necessária consequência à essência do Ain-Sof; é uma livre decisão, que permanece um mistério constante e impenetrável (Cordovero, no início de Elimah). Portanto, na opinião da maioria dos cabalistas, a questão da motivação última da criação não é legítima, e a alegação encontrada em muitos livros de que Deus queria revelar a medida de Sua bondade está ali simplesmente como um expediente que nunca é sistematicamente desenvolvido. Esses primeiros passos para fora, em resultado dos quais a Divindade torna-se acessível para as investigações contemplativas dos cabalistas, acontecem dentro do Próprio Deus e não “saem da categoria do Divino” (Cordovero).35


O que divisamos até aqui é uma doutrina cabalística que trata da emanação e da criação. O problema surge quando se quer pensar as determinações capazes de indicar este primeiro movimento do Ain-Sof em direção à criação. A doutrina das etapas de manifestação contínua das Sephiroth parece, portanto, se confundir com esta primeira emanação. Porém, seguindo uma direção um pouco diferente, temos a doutrina da criação na Cabala luriânica. Ali, temos uma diferença radical (um abismo) entre o Ain- Sof e o mundo da emanação. Esta doutrina possui três pontos fundamentais de articulação: os conceitos de Tsimtsum (Contração), Shevirah (A Quebra dos Vasos) e Tikun (Reintegração Cósmica)36.


De modo sucinto, podemos delimitar o corpo conceitual destes termos do seguinte modo:


1.Tsimtsum: O primeiro ato do Ain-Sof não foi “de revelação e emanação, mas, pelo contrário, foi de ocultamento e limitação”37. Deus se contrai e permite que algo que não o Ain-Sof possa vir à existência. Este lugar é entendido como um ponto em Sua infinitude – mas, segundo os cabalistas, compreende todo o Universo de nosso ponto de vista. Todos os poderes de Deus estão ocultos no Ain-Sof, mas o tsimtsum foi a realização de um julgamento (Din) e autolimitação. O Ain-Sof continua o tsimtsum dando força formativa à criação, daí a compreensão cabalística acerca da distinção da luz do Ain-Sof (a vontade) e o próprio Ain-Sof incognoscível (é a primeira que permite que algo como a continuação ocorra). A diferenciação, o múltiplo da criação se dá não no Ain-Sof em si mesmo, mas no tsimtsum através da criação de vasos (kelim) onde a “essência divina que permaneceu no espaço primordial é precipitada para fora”38. Entretanto, devemos ter em mente que para os cabalistas toda esta descrição deve possuir caráter apenas figurativo já que baseada numa perspectiva humana.


2. Shevirah: trata-se da exigência de dá termo aos processos anteriores à estrutura complexa da criação e de uma diferenciação. Os vasos são as formas do manifesto que vão da primeira forma assumida depois do tsimtsum (o Adam Kadmon, ou seja, o homem primordial ou arquetípico) à Malkuth, a décima Sephirah. As luzes das Sephiroth recebiam vasos para se organizarem – as três primeiras Sephiroth conseguiram manter sua luz, mas a luz que se propagou para as outras Sephiroth foi derramada de uma só vez e os vasos de cada Sephiroth se quebraram. Parte desta luz retornou para sua fonte, “mas o resto foi arremessado junto com os próprios vasos”39 e das cascas surgiram tanto a matéria bruta quanto a essência do mal, as kiplot.


3. Tikun:, os vasos quebrados estavam sujeitos à restauração e é por isto que Tikun significa a “restauração do universo a seu desígnio original na mente do Criador”40; trata-se de recompor a luz emanada por Adam Kadmon, ou seja, um processo de redenção que só cabe ao homem realizar41.


Contudo, apesar destes desenvolvimentos posteriores à compreensão da distinção entre Ain-Sof e mundo emanado, ainda permanece a questão de sabermos se o conceito de negatividade é, na tradição judaica, anterior ao Sêfer Ietsirá como aponta Kaplan ou se o mesmo é plenamente devedor do neoplatonismo com alguns acréscimos originais como indica Scholem.


Como a primeira posição é inverificável, devido ao caráter mesmo das impossibilidades de verificação documental sobre o tema, deve-se partir das raízes neoplatônicas do conceito da negatividade que surgem com Filon de Alexandria quando este conjuga a filosofia grega com a metafísica mística dos judeus para conquistarmos uma visão mais abrangente do conceito e as implicações filosóficas de seus desenvolvimentos na História. Com Filon se abre, em definitivo, a compreensão desta negatividade do ser-Deus e que trará implicações fundamentais nos desenvolvimentos do Neoplatonismo e da mística cristã que seguirá aquilo que ficou conhecido como a via negativa. É anda controverso afirmar taxativamente a influência da tradição negativa cabalística no pensamento de Filon. Emile Bréhier, por exemplo, não acredita que Filon esteja devidamente assentado sobre raízes profundas no judaísmo por acreditar que a colônia judia alexandrina ficara esquecida pelos comentadores da Torah42. Wolfson, por outro lado, discorda plenamente de Bréhier por acreditar que o judaísmo no tempo de Filon pertencia ao mesmo tronco do judaísmo farisaico que dominava o Sinédrio e que prosperava na Palestina43. Além do mais, Filon é acusado de desconhecer o idioma hebraico e lançar mão da Septuaginta, a tradução grega da Bíblia. Seja como for, o próprio Filon não encarava tal questão como problemática, uma vez que era crença pessoal sua de que se Deus havia inspirado os homens na composição da Bíblia em hebraico, Ele deveria ter inspirado os tradutores a escolherem os melhores termos em grego para sua tradução e manter, deste modo, viva a mensagem surgida originalmente em hebraico.


No seu De Vita Mosis é atestado essa sua compreensão, já que se trata especialmente de manter ativa uma aproximação, através da linguagem, com esse Deus vivo que surge para Moisés e que deve ser conhecido por todos. O que se opera, então, é o choque entre uma tradição criacionista, a hebraica, e a tradição grega, centrada num imanente perene e que, mesmo tendo elaborado a figura do primeiro motor, não o pensava como um Deus criador separado do mundo criado por Ele mesmo. A separação entre aquele que cria e a obra de sua criação é um privilégio da tradição hebraica e que penetra o mundo helênico exatamente através da figura de Filon. Deste modo, entender- se-á, diferentemente do modo grego, que o cosmo não pode ser compreendido como o primeiro Deus, como o Criador em si, mas sim como sua obra, sendo um Deus sem forma, mas que torna todas as coisas visíveis, construindo a natureza. Este Deus, para Filon, que “ama a virtude, a piedade e a excelência”44, é “Pai e Criador do Universo”45 e possuidor de um abismo em que Ele mesmo é invisível, sem forma, sendo um mundo incorporal, a essência, que é o modelo de todas as coisas existentes46.


Mas esta negatividade divina frente ao mundo não define uma diferença ontológica insuperável. Ao contrário – assim como o processo de tikun cabalístico – o homem pode se voltar para esta realidade e relacionar-se com ela. Esta é a estância ontológica do divino que estabelece o modelo de tudo o que pode ser visitado pelo homem que se dedica à virtude e à excelência, pois em sua alma será possível realizar esta união, já que a própria origem é fonte e pela imitação de suas virtudes no mundo manifesto a alma pode inserir-se num estado de relação com a mesma. Escreve Filon:

E felizes são eles que foram capazes de tomar, ou que trabalham diligentemente para tomar uma cópia fiel desta excelência em suas almas; por deixar a mente, acima de todas as outras partes, tomar a perfeita aparência da virtude e, se isso não se realizar, então é preciso deixar que um sentimento decidido e constante surja para alcançar esta aparência; pois, de fato, não há ninguém que não saiba que um homem numa condição inferior é imitador do homem de alta reputação e estes últimos, como vemos, desejam principalmente em direção àquilo que aponta para suas próprias inclinações e esforços47.


A lei divina, portanto, aqui parece indicar um modo pelo qual o próprio Deus pode indicar um caminho para que a alma se direcione a Ele e realize esta união. Filon levava em alta conta a figura de Moisés que lhe parecia “o maior e mais perfeito homem que já existiu”48. Esta perfeição indica um modo de viver exatamente esta virtude, piedade e excelência exigidas por esta esfera originária. Tal compreensão é importante por permitir que os primeiros cristãos usassem as idéias de Filon saltando de Moisés para Jesus Cristo. Apesar de Filon não ter nada a ver com as igrejas cristãs em seus estágios iniciais, é interessante notar que os trabalhos de Filon só sobreviveram “porque eles foram tomados pela tradição cristã”49.


Seja como for, o que é inegável é a dimensão dessa mesma negatividade no pensamento teúrgico neoplatônico inaugurado por Ammonius Saccas e que teve como discípulo Plotino e que parece ter como fonte as doutrinas de Filon. A negatividade cabalística parece surgir, então, como o fundamento e a origem das visões posteriores que pensaram Deus à luz da sua negatividade. Esse conceito salta do ciclo restrito dos cabalistas primevos ao pensamento filosófico de Filon, Plotino, Proclo, Dionisius e, por fim, na mais alta tradição mística cristã com Mestre Eckhart.



REFERÊNCIAS


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